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FONTE: http://quecazzo.blogspot.com/2011/10/centro-de-filosofia-e-ciencias-humanas.html
Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE: Humano, Demasiado Humano (Por Cynthia Hamlin)
Por Cynthia Hamlin
No dia 29 de setembro de 2011, cerca de 100 estudantes da UFPE foram à reitoria protestar contra o que consideram a ausência de uma política institucional em relação à ocorrência de suicídios no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Embora tenham sido colocadas grades nas varandas de todos os andares do prédio, foram registrados 3 casos no ano de 2011, o que atestaria a insuficiência das medidas adotadas.
A iniciativa dos estudantes é importante e revela a necessidade de se pensar coletivamente a solução não apenas deste, mas de uma série de problemas relativos a segurança, espaços de convivência, funcionamento dos elevadores, más condições das salas de aula, para ficarmos apenas no âmbito do CFCH. Apesar disso, uma política de prevenção de suicídios eficaz pressupõe clareza acerca da relação entre os suicídios e os diversos problemas que atingem a comunidade do CFCH e da UFPE, como um todo. E é aí que as dificuldades começam.
O suicídio é um fenômeno complexo que pode envolver fatores de diversas ordens - biológica, psicológica, social e cultural - e deve ser entendido como um processo, mais do que como um simples ato. Isso significa dizer que, ainda que ocorra em um local e momento específicos, pode estar associado a processos de médio e longo prazo, como a depressão, o abuso de drogas, a doença mental. Esses processos não ocorrem em um vácuo social, estando associados a determinados contextos que podem atuar, ora como causa, ora como efeito, ora como reforçando-se mutuamente: o ambiente familiar, o tipo de relações entre os grupos de pertencimento e outros grupos, relações interpessoais etc. Por fim, ocorrem em um lugar específico que, além de representar ocasião ou contexto para o ato em si, pode estar associado ao uso de métodos particulares que frequentemente carregam um conteúdo simbólico e comunicativo (Hamlin & Brym, 2006; Brym & Hamlin 2009).
Generalizações - especialmente as de base reducionista e construídas sobre um número insuficiente de casos que fundamentam argumentos do tipo: “estudantes de ciências humanas são mais propensos ao suicídio”, ou “a ‘desumanização’ do campus e do CFCH tem contribuído para os suicídios observados” – frequentemente se baseiam em associações causais que não se sustentam, ou entre elementos que estão tão remotamente associados que não podem servir como guia para nenhuma política de prevenção séria. Ao contrário, terminam gerando estigmas que, esses sim, podem atrair mais pessoas para escolherem o CFCH como local para dar cabo à própria vida na medida em que estabelecem uma associação simbólica entre o prédio e o suicídio. (Falo aqui de uma associação simbólica apenas na medida em que existe, na cidade do Recife, uma série de outros edifícios com características estruturais semelhantes ao CFCH. Isso não significa dizer que elementos simbólicos seriam os únicos, ou mesmo os mais importantes, na escolha de um local qualquer).
Dado que argumentos como os acima, apresentados com graus de sofisticação variável, tem sido os mais comuns, torna-se fundamental esclarecer alguns pontos.
Em primeiro lugar, o estigma que vem sendo associado aos estudantes de humanas e ao prédio do CFCH baseia-se no pressuposto de que os suicidas, em sua maioria, consistem em estudantes da UFPE, particularmente os de humanas. Isso não parece ter fundamento. Uma rápida observação dos registros, efetuados pela Direção do CFCH, relativos ao suicídios ocorridos desde 1997 sugere que poucos eram estudantes da UFPE. Digo “sugere” porque os dados a que tive acesso são insuficientes. (Havia lacunas no registro disponível, de forma que solicitei à Direção do Centro um registro mais completo, desde o ano de 1997 - quando a Universidade passou a efetuar o registro sistemático dos casos. Aguardemos, pois. E cobremos).
Em segundo lugar, e relacionado à questão anterior, impedir a cristalização do estigma implica a celeridade da instituição, por meio de sua Assessoria de Comunicação, em desmentir falsos boatos acerca do suicídio de estudantes. Isso é especialmente importante diante do poder das redes sociais contemporâneas na disseminação de boatos. Vejamos.
No dia 28 de setembro último, o Jornal do Commércio publicou uma matéria na qual pelo menos duas das informações fornecidas não procediam. Primeiro, afirma que ocorreram quatro suicídios no CFCH este ano (foram três - já não é ruim o suficiente?); segundo, afirma que o último caso ocorrido envolvia uma aluna da UFPE, mais especificamente, do Curso de Ciências Sociais. Até o momento em que escrevo, três dias após a divulgação da notícia pelo Jornal do Commércio, não vi a Universidade se manifestar publicamente a fim de desmenti-la.
Além de contribuir para o referido estigma, ao se omitir de ações como esta a Universidade está contribuindo para um outro fenômeno, que em sociologia se denomina de “pânico moral”. O pânico moral assume as seguintes características:
Uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge e passa a ser definido como uma ameaça a valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotípica pelos meios de comunicação de massa; as barricadas morais são erigidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas cujas opiniões são consideradas sensatas e moralmente corretas [right-thinking people]; peritos socialmente reconhecidos pronunciam seus diagnósticos e soluções; a condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se mais visível. [...]. Algumas vezes o pânico passa e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; outras vezes, tem repercussões mais sérias e duradouras e pode produzir mudanças legais e em políticas sociais, ou mesmo na forma como a sociedade se autoconcebe (Cohen, citado em Thompson, 1998: 7).
Assim como ocorre na maioria dos casos de pânico moral, a visibilidade da situação real e sua resolução são especialmente difíceis porque envolvem um tema considerado tabu. Se o filósofo francês Edgar Morin (1968) já afirmava que, após a revolução sexual, a morte permaneceu como o último grande tabu do século XX, talvez caiba aqui uma hipérbole: a morte por suicídio é o tabu que não ousa dizer seu nome. Isso explica, em parte, o silêncio da Universidade em relação ao tema. Outra parte do silêncio poderia ser explicada por meio da referência a um fenômeno que ficou conhecido como “efeito Werther”.
O efeito Werther refere-se à onda de suicídios observada entre os jovens românticos, especialmente na Alemanha, após a publicação do romance de Goethe - Os Sofrimentos do Jovem Werther - que de certa forma glamourizava o suicídio ao caracterizá-lo como um ato de coragem. O fenômeno caracteriza, assim, o elemento de difusão ou contágio do suicídio a partir de sua menção ou divulgação – um fenômeno que tem servido como fundamento de uma espécie de código de ética entre jornalistas do mundo inteiro.
Embora tenha afirmado que “não há dúvida de que a ideia do suicídio se transmite por contágio”, Durkheim (2000: 138) teve o cuidado de definir o contágio em termos de imitação e delimitar em que sentido este último poderia ser legitimamente aplicado ao estudo do suicídio:
Há imitação quando um ato tem como antecedente imediato a representação de um ato semelhante, anteriormente realizado por outros, sem que entre essa representação e a execução se intercale nenhuma operação intelectual implícita ou explícita, sobre as características intrínsecas do ato reproduzido.
Isso significa que o suicídio por imitação tende a ocorrer na ausência de reflexão - o que aponta para a necessidade de fazer as pessoas expostas ao suicídio, como é o caso dos nossos alunos, refletirem sobre o assunto. E o silêncio certamente não é a forma mais apropriada de gerar uma reflexão informada.
Por outro lado, existem controvérsias consideráveis acerca do alcance dos processos imitativos na explicação das taxas de suicídio. O próprio Durkheim atribuía um alcance limitado ao suicídio por imitação, afirmando que “do fato de que o suicídio possa transmitir-se de indivíduo para indivíduo, não se segue a priori que [...] ela afete a taxa social de suicídios”(Ibid: 143). E utilizava como argumento a ideia de que, se o contágio tivesse uma influência marcante nas taxas de suicídio, dever-se-ia observar um fenômeno de concentração dessas taxas em determinados núcleos geográficos (por ex., o centro das cidades) e uma diminuição gradual dessas taxas à medida em que se afasta desses núcleos. Traduzindo para o nosso caso, ao longo de um período relativamente extenso, deveria ser possível observar um número relativamente elevado de suicídios entre estudantes, professores e funcionários da UFPE, em particular os diretamente expostos ao suicídio, em comparação com suicidas oriundos de outras áreas da cidade. Como vimos, este não parece ser o caso. Mas aguardemos mais informações antes de fazermos quaisquer afirmações categóricas neste sentido. (Abro aqui um parêntese para enfatizar fortemente que não estou usando este argumento para defender a ideia de que, se não altera as taxas de suicídio entre os membros da UFPE, a difusão não deve ser considerada em uma política interna de prevenção de suicídios. Um único caso é um caso em excesso. O que estou argumentando é que esse risco deve ser combatido por meio da reflexão informada, já que a exposição ao suicídio é um fato concreto, pelo menos no momento).
O argumento de Durkheim não foi consensualmente aceito e a controvérsia continuou. Nas décadas de 1970 e 1980, o sociólogo David Philips publicou uma série de artigos sobre o tema. O principal deles foi resumido por outro sociólogo, Ira Wasserman (1984: 427), da seguinte forma:
Empregando um método quasi-experimental para examinar a influência que as estórias de suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times entre 1947 e 1968 tiveram nos padrões de suicídio nos meses seguintes, Philips (1974) formulou um novo teste para a teoria da imitação. Contrariamente a Durkheim, encontrou um aumento significativo no número de suicídios no mês que se seguiu ao aparecimento dessas estórias no New York Times.
Ao submeter a hipótese da imitação a teste novamente, Wasserman (Ibid.) efetuou um estudo com base em uma série de modelos que o permitiram controlar fatores exógenos, como a influência dos ciclos de negócios e das crises econômicas nos resultados observados por Philips. Concluiu que não havia correlação significativa entre a taxa nacional de suicídios e as estórias sobre suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times no período 1947-1977. Por outro lado, ao aplicar seu modelo apenas às manchetes relacionadas a “celebridades”, observou uma correlação significativa entre as estórias contadas a partir de tais manchetes e um aumento nas taxas de suicídio no mês subsequente à sua publicação. Isso significa que a hipótese de Philips é mais limitada do que ele supunha, isto é, tende a ser corroborada nos casos de reportagens sobre o suicídio de celebridades.
A isto, a Organização Mundial de Saúde menciona outras conclusões importantes, retiradas de outras pesquisas: primeiro, que o impacto da cobertura jornalística na mídia impressa e televisiva tende a ser maior entre pessoas jovens; segundo, que não são as notícias per se que geram um aumento nas taxas observadas, mas a forma como os suicídios são noticiados para as populações vulneráveis (de maneira sensacionalista, com excesso de detalhes, oferecendo explicações simplistas ou sugerindo que o fenômeno é inexplicável, glamourizando o ato ou transformando a vítima em mártir, caracterizando o suicídio como única saída possível, omitindo a dor de familiares e amigos, dentre outros).
Assim, ao contrário da ideia simplista de que os suicídios não devem ser noticiados a fim de evitar sua difusão por contagio ou imitação, num documento de prevenção do suicídio direcionado a profissionais da mídia (World Health Organization, 2000: 6) enfatiza-se que “certos tipos de cobertura [jornalística] podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”. O documento enfatiza ainda que “sempre existe a possibilidade de que a publicização do suicídio possa tornar a ideia de suicídio ‘normal’. A cobertura contínua e repetida do suicídio tende a induzir e a promover preocupações suicidas, particularmente entre adolescentes e adultos jovens.” (Ibid). Neste sentido, a conclusão geral é a de que
Assim, ao contrário da ideia simplista de que os suicídios não devem ser noticiados a fim de evitar sua difusão por contagio ou imitação, num documento de prevenção do suicídio direcionado a profissionais da mídia (World Health Organization, 2000: 6) enfatiza-se que “certos tipos de cobertura [jornalística] podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”. O documento enfatiza ainda que “sempre existe a possibilidade de que a publicização do suicídio possa tornar a ideia de suicídio ‘normal’. A cobertura contínua e repetida do suicídio tende a induzir e a promover preocupações suicidas, particularmente entre adolescentes e adultos jovens.” (Ibid). Neste sentido, a conclusão geral é a de que
reportar os suicídios de uma maneira apropriada, acurada e potencialmente útil pela mídia esclarecida pode prevenir a perda trágica de vidas pelo suicídio. (Ibid.).
Dada a exposição a que temos sido submetidos ao suicídio na UFPE, o poder das novas mídias em difundir boatos que são reforçados pelas mídias tradicionais e a situação de pânico moral que isso ajuda a difundir, o silêncio da UFPE em torno do tema não contribui em nada para a resolução desta situação: ao contrário, tende a perpetuá-la e a gerar uma série de problemas associados à ansiedade, ao sentimento de insegurança e aos conflitos que decorrem deles.
Para o bem ou para o mal, o suicídio não pode mais ser tratado como um tabu entre nós, mas como algo “humano, demasiado humano”. Já está mais do que na hora de começarmos a falar sobre assunto de forma clara, informada e responsável. Façamos, cada um de nós, a nossa parte.
(a ser editado)
Referências
Brym, Robert J.; Hamlin, Cynthia Lins. (2009) “Suicide Bombers: Beyond Cultural Dopes and Rational Fools”. In: Cherkaoui, Mohamed; Hamilton, Peter. (Org.). Raymond Boudon: A Life in Sociology: Essays in Honour of Raymond Boudon. 1 ed. Oxford: The Bardwell Press, v. 2, p. 83-96.
Durkheim, Émile (2000). O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes.
Hamlin, Cynthia Lins; Brym, Robert J. (2006) The Return of the Native: A Cultural and Socio-Psychological Critique of Durkheim's Suicide based on the Guarani-Kaiowá of South-Western Brazil. Sociological Theory, Estados Unidos, v. 24, n. 1, p. 42-57.
Morin, Edgar (1951) L’Homme et la mort. Paris: Éditions du Seuil.
Thompson, Kenneth (1998). Moral Panics. Londres e Nova York: Routledge.
Wasserman, Ira M. (1984). Imitation and Suicide: a reexamination of the Werther effect. American Sociological Review, V. 49, June, p. 427-436.
World Health Organization (2000). Preventing Suicide: a resource for media professionals. Genebra: Mental and Behavioural Disorders, Department of Mental Health, WHO.
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