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sexta-feira, 18 de março de 2011

Entrevista de Ivanildo Sampaio (Jornalista e Diretor de Redação do JC

Entrevista Publicada no livro O PENSAMENTO DAS JUVENTUDES BRASILEIRAS NO SÉCULO XX

RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE CHUMBO
Ivanildo Sampaio de Souza

"Jornalismo é um serviço público, sendo assim, não está a serviço de grupos ou de interesses pessoais".


         Meu nome completo é Ivanildo Sampaio de Souza. Nasci em uma cidade do interior de Pernambuco, São José do Egito, em 03 de janeiro de 1943. E sou jornalista profissional há 42 anos. Meu pai era funcionário público dos Correios, enquanto minha mãe era doméstica. E foi mãe de dez filhos.
         Eu estudei o curso primário e o ginasial em São José do Egito. E depois fui para Sertânia, que era um local mais adiantado, onde fiz o que hoje se chama de curso médio. Em 1960, fiquei o ano sem estudar. E em 1961 vim para o Recife, tentar continuar meus estudos, embora tivesse, no início, condições de apenas trabalhar. E foi só em 1963 que fiz o vestibular para Jornalismo.
         Saí de casa porque não havia nenhuma perspectiva de futuro na minha cidade natal. Ali se ia levando a vida empurrando com a barriga e sem nenhum horizonte. E pensava que tinha de sair, para poder estudar. Mas como meu pai não tinha condições para me manter no Recife, então resolvi vir por minha conta. Saí de casa tão logo fiz 18 anos.
         E vim para Recife para procurar emprego. E depois do emprego a minha perspectiva era entrar numa Faculdade. Então, de princípio, eu trabalhei num banco, que não existe mais. Chamava-se Banco Magalhães Franco.
         Logo que cheguei do sertão fiquei morando numa pensão, que abrigava jovens estudantes, bancários, comerciários, alguns funcionários públicos de baixa categoria. E em dois ou três meses eu já havia sido aprovado nuns três testes de banco. O primeiro que me chamou – como eu precisava do emprego - foi o Banco Magalhães Franco. E fui trabalhar lá. Fiquei algum tempo, até que esse banco foi comprado por um banco gaúcho, chamado Banco da Província do Rio Grande do Sul, que depois passou a se chamar Meridional, que também não existe mais. E cheguei até a crescer nesse banco, porque menos de dois anos depois de entrar fiz um curso de formação de gerência de câmbio, que era um dos destaques da época.
         Mas o fato é que fiz o vestibular em 1963 e passei. E era incompatível a vida em banco com a Universidade. Então eu ainda fiquei um ano no banco trabalhando ao mesmo tempo que estudava à noite na Universidade Católica de Pernambuco. Mas resolvi deixar o banco no ano seguinte. E fui ser estagiário da revista Manchete. Eu ganhava um pró-labore simbólico, que mal dava para me manter. E depois passei a fazer uma coluna para o Jornal do Commercio – que era parceiro da Manchete – e eles também passaram a me remunerar, o que juntando dava para pagar a minha pensão e a Faculdade.
         Morei em algumas pensões inicialmente. E só depois morei numa república, onde só havia estudantes, embora houvesse uma dona. Mas, morávamos separados da dona da república. Os quartos estavam divididos em tabique e havia um único banheiro. Para fazer as refeições, tínhamos que procurar outro local. E a gente saía para almoçar, jantar ou tomar o café da manhã sempre numa pensão, que nos cobrava mensalidade.
         Todos nós éramos do interior, inclusive de cidades fora do Estado. Tinha pernambucano, paraibano, alagoano. E um daqueles estudantes hoje é médico da Vigilância Sanitária, chama-se Fernando Magalhães. Ele e outro irmão formaram-se em Medicina. O irmão de Fernando chamado Guilherme fazia Veterinária, mas depois foi estudar na Bahia e acabou fazendo Medicina, também.
         Um morador da república chamado Paulo, que era da Paraíba, morreu provavelmente de embolia, porque ninguém sabe o que aconteceu direito naquela época. Saíamos todas as sextas-feiras pra tomar um chopinho e aquela coisa toda depois das aulas. E ele começou a passar mal. Quando chegamos à república estava gemendo. E a gente dizia para ele: “Paulo, acaba com esse negócio”. E no outro dia ele internou-se e morreu, o que foi um choque pra gente. O nome dele completo era Paulo Erivan de Carvalho. E inclusive a turma dele o homenageou postumamente com o seu nome inscrito na placa de formatura da Faculdade de Direito da Federal.
         Sobre a minha vida nas repúblicas ainda tinha algo interessante a registrar, que eram as divisões políticas, o que significa dizer que tinha gente da extrema direita à extrema esquerda. E os dois irmãos de que falei eram de direita mesmo. Me parece que seus pais eram proprietários de terra no Agreste de Pernambuco. Naquela época, havia Arraes, então eles eram anti-arraesistas ferrenhos. Eu era um arraesista danado. Portanto era um negócio complicado, porque a gente batia boca.
         Mas, quando eu cheguei aqui, se a minha idéia inicial era permanecer por um tempo e depois deixar Recife e ir pra Brasília, como eu comecei a trabalhar, então senti que em Brasília, uma cidade em formação – por causa de uma leitura que a gente fazia do jornal – era para quem já estava formado, ou ia tentar outra coisa, como plantar sementes para ser um futuro empresário. E não fui. Desisti.
         E essa idéia de não ir pra Brasília foi mais reforçada quando entrei na Universidade, pois comecei a achar que a coisa era por aqui mesmo, deveria me formar e depois tocar a vida.
         E como sou na Imprensa, de uma geração de transição, creio que ninguém fazia jornalismo apenas como carreira. Ou a pessoa tinha um emprego público, ou tinha o Jornalismo como uma segunda atividade. Eu, quando entrei na Universidade, decidi que ia levar aquele negócio a sério. Queria ser jornalista. E não ter dois empregos. E essa coisa foi um divisor de águas, porque toda a minha geração começou a trabalhar na imprensa para ser exclusivamente jornalista,
         Lá no Rio de Janeiro, por exemplo, jornalista já vivia só do Jornalismo, porque Samuel Weiner, foi quem deu dignidade à profissão. Na Última Hora, ele começou a trazer jornalistas de outros jornais com um salário muito maior que se pagava no mercado de então. A mesma coisa aconteceu em Pernambuco com a Última Hora, que em 1964 acabou empastelada. Eu não cheguei a ser da Última Hora, mas eu lia muito esse jornal. Quando Samuel chegou em Pernambuco, tirou os melhores profissionais do Jornal do Commercio, do Diario de Pernambuco e de jornais pequenos pagando muito mais que o mercado local, mas exigindo dedicação só à Última Hora.
         Então já se conseguia naquela época perceber, em 1962 e 63, que era possível viver com dignidade sendo jornalista. E eu investi nisso: vou ser jornalista. Pensava que era só começar a progredir que a gente terminava bem. E consegui trabalhar na Manchete, que era a maior revista do País.
         Lembro-me que em 1969 já estava no Rio de Janeiro, trabalhando na matriz. Enquanto a Veja vendia naquela época 90 mil exemplares, a Manchete tirava 350 mil. Ou seja, quatro vezes mais. E o Cruzeiro, provavelmente, vinha em terceiro lugar em circulação, porque tinha entrado num processo de decadência em função da crise dos Diários Associados. E que apesar de ter grandes profissionais não tinha se atualizado tecnicamente. Era feia, do ponto gráfico e de impressão. E a própria crise fez com que muitos profissionais bons que o Cruzeiro tinha, migrassem para a Manchete. Contrataram o Indelecio Vanderley, João Martins, David Husser, Ivan Alves entre outros. Quer dizer, gente de primeiro time que tinham sido d’O Cruzeiro estavam na Manchete. Já nos anos 1960, ainda antes do golpe.
         A Manchete tinha um padrão gráfico indefinido. Mas quando trouxe o Justino Martins, que tinha sido da revista Paris Match na França, a revista melhorou. A revista começou com Henrique Pongetti, e teve vários diretores antes de Justino, incluindo-se Hélio Fernandes, o Otto Lara Rezende e outros. Só depois deles que veio o Justino Martins. Quando eu cheguei já era o Justino, que deu uma cara nova à revista. E mudou o padrão: 60% da revista eram fotografia, enquanto 40% eram texto. E Justino mesclava coisas muito sérias com coisas muito hilárias. Fazia cobertura de um concurso de misses, mas publicava a crônica de Fernando Sabino junto. Fazia desfile de carnaval, ao mesmo tempo tinha Jorge Amado escrevendo seriado. Ou Carlos Heitor Cony escrevendo a história de Getúlio. Quer dizer, ele mesclava tudo. Justino era um grande fazedor de revista. Talvez Justino não fosse um grande texto, como jornalista, mas era um grande editor de revistas. Ele balanceava certo, o que fazia da revista um sucesso de vendas.
         Ainda hoje eu digo – quando faço palestras em faculdades – que os cursos de Jornalismo eram mais completos naquele tempo, até por uma condição de época. Hoje, temos tecnologia exigindo profissionais com domínio completo de Informática, de como navegar, consultar sites e portais. Mas, naquela época a formação era outra. E era muito mais humanística. Nós estudávamos línguas, por exemplo, como francês. Você estudava a literatura francesa, além de duas cadeiras de História: antiga e medieval; moderna e contemporânea. E por que isso? Era preciso ter um conhecimento geral. E ainda havia a cadeira de Sociologia, uma de Filosofia, uma de Ética e outra de introdução ao Direito. E com tudo isso combinado com as matérias técnicas pertinentes ao curso.
         Então você ganhava uma cultura geral, o que significava ao menos a ler e aprender corretamente a escrever. Muita coisa passava despercebido. Então tudo isso dava uma base para quando o estudante fosse fazer um texto, pelo menos saber sobre o que estava escrevendo.
         Não éramos neófitos a ponto de não saber quem era um Sartre ou um Descartes. Havia uma noção geral dessa coisa. E isso implicava em muita leitura paralela.
         Um grande professor de História que nos tínhamos, por exemplo, quando Érico Veríssimo lançou O Senhor Embaixador, nos mandou ler esse livro num final de semana para comentá-lo na segunda-feira. Quer dizer, tinha dessas coisas naquela época. Lembro-me que Luiz Beltrão, que ensinava Técnicas de Entrevista de Jornal, uma vez passou como tarefa para ser feita durante uma semana, a leitura de “GOG” num livro do escritor italiano chamado Giovani Rapinni, no qual ele fazia muitas entrevistas fictícias. Por exemplo, ele entrevistava Cristo, Albert Eistein, Freud, Goethe ou Judas Escariotes. Todas as entrevistas eram fictícias, mas ele tinha uma técnica de perguntar e colocar as respostas que eram impressionantes. Isso era muito bom, pois o objetivo era formar gente na técnica de entrevistas para o exercício da profissão.
         Havia muito isso. Você era obrigado a ler coisas que hoje a garotada não lê porque o currículo não pede. O curso está muito mais preocupado com a formação técnica. E não humanística. O sujeito faz uma prova para um emprego e não consegue se expressar ao escrever. E a primeira condição do jornalista é saber escrever. Foi feita uma prova lá no Jornal para estagiário onde foram inscritos cerca de cento e vinte candidatos. Conseguimos tirar apenas dois. Nem jornal a garotada está lendo. Você faz um teste de conhecimento com o que o jornal publicou durante uma semana. E 90 por cento deles não acertam 80% das perguntas. Ou seja, como é que você quer ser jornalista sem ler jornal?    
         Esse descuido com a própria formação está colocado no mercado profissionais com muitas deficiências. Os que passam nesses testes geralmente são filhos de uma família que lê, que tem biblioteca em casa ou são filhos de professores. Quando se acha então alguns desses diferenciados aí a gente segura. Mas é coisa rara.
         Quando eu entrei na Faculdade, em 1963, o curso de Jornalismo era parte integrante da Faculdade de Filosofia. Não havia um Diretório Acadêmico de Jornalismo. Havia o Diretório Acadêmico de Filosofia. E como eu sou meio inquieto, quando cheguei vi que havia uma continuidade naquele negócio. Eram sempre as mesmas pessoas, tanto na chapa anterior, como na atual. E havia um pouco de profissionalismo estudantil nos Diretórios. E aí eu me insurgi contra isso no primeiro ano, quando fui representante de classe. No segundo anos nós criamos o nosso Centro. Nós e o pessoal de Psicologia, que também tinha o mesmo problema e eram ligados à Faculdade de Filosofia. E como os dois cursos ainda não haviam sido reconhecidos pelo MEC, então não podiam ter um Diretório. E Psicologia e Jornalismo então criaram os seus Centros Acadêmicos. Nós éramos considerados dentro da Faculdade como grupos de esquerda.
         A Universidade Católica era uma universidade burguesa naquela época, com muito filhinho de papai, porque os filhos da elite de Pernambuco estavam lá. E por duas razões: havia cursos que a Federal não oferecia; ou havia cursos com um alto nível de ensino com os jesuítas. O primeiro curso de Psicologia de Pernambuco foi lá. Então havia muita gente com muita posse estudando na Católica. Como era o caso também do curso de Direito, que era dirigido pelo padre Antônio Grangeiro, que era um grande educador. E esse curso também tinha um bom nível.
         Então a Católica tinha bons cursos e em alguns casos até melhores que os da própria Federal. E como havia cursos cheios de gente da burguesia e de filhinhos de papai, nós da classe média baixa, éramos meio revoltados. E apesar de haver muita gente da burguesia, a grande maioria era de classe média que trabalhava durante o dia e estudava a noite, como os que trabalhavam em banco que nem eu. Naquela época, até que era um emprego que dava dignidade. E não é a miséria que esses bancários ganham aí hoje em dia, porque pagava-se razoavelmente bem. Além dos bancários, havia muitos funcionários públicos na Católica, principalmente no curso de Direito. Essa classe média, como não era rica, ficava mais à esquerda.
         E eu fui eleito Presidente do Centro Acadêmico de Jornalismo, apesar de ter na minha sala uma usineira, um funcionário do Consulado norte-americano, um capitão da Marinha e outros que eram declaradamente da direita. Mas tínhamos maioria, pois numa classe de cinqüenta, acredito que ganhei a eleição com mais ou menos trinta e sete votos como representante de classe, e no curso inteiro, quando me candidatei à Presidente do Centro fui eleito com cerca de 70 por cento dos votos.
         E a gente brigava no Centro Acadêmico por melhores condições dentro da própria universidade. Por exemplo, quando o padre Aloísio Mosca de Carvalho deixou a Reitoria após nove anos, veio um novo reitor, que era um padre jesuíta que estava na Alemanha, chamado Padre Geraldo. E uma das primeiras coisas que tentou e não conseguiu – porque nós levantamos a Faculdade – foi tirar o curso de Jornalismo do prédio da Rua do Príncipe para o Colégio Nóbrega. E a gente se recusou a ir. Eu levantei a turma e o curso: “Nós não vamos. Eu não vou”. E arranjei imediatamente o apoio do pessoal de Psicologia. E brecamos o projeto. O padre teve que recuar, e nós ficamos lá no prédio central. Então havia muito disso, também. Como nós queríamos condições para fazer um jornal interno, mas não conseguimos, de certa maneira tivemos uma ajuda da própria Reitoria pra imprimir esse jornal, que era O Foca.
         Eu nunca fui do Partidão, mas tinha muita gente lá que era. O Partidão era muito mais forte na Universidade Federal de Pernambuco. E ele era forte também no movimento secundarista, mais do que na própria Católica, porque lá havia muita resistência. Tinha muito tenente e capitão fazendo um curso superior ali, logo depois de abril de 1964.
         E nem na Católica era forte o movimento estudantil católico, até porque havia muita dispersão. Muitas vezes, na escolha do DCE da Católica, havia a presença do Partidão por lá. Por exemplo, Cadoca que era da Federal, ia muito lá para fazer política e angariar votos. Talvez o pessoal mais ligado ao Partidão fosse mais ligado ao DCE, também.
         O Partidão era muito organizado. Tinha umas frases lá e uns sinais que a gente não sabia bem o que era. Jarbas de Holanda tinha sido cassado em 1964. Foi o único vereador que votou pela permanência de Pelópidas da Silveira na Prefeitura de Recife. Jarbas era militante de carteirinha do Partidão. E Jarbas era da Federal. Ele criou uma célula forte na Faculdade de Direito da Federal. Não só ele, mas Roberto Freire, que também era amigo dele. No movimento estudantil da Católica, o Partidão quase não dava as caras, mas tinha uma atuação forte na Federal, sobretudo.
         Em abril de 1964, eu tive dois colegas de curso presos, um inclusive era militar. Era sargento do Exército, e ficou sumido uns quinze dias. E eu morava na Rua Direita. Ao sair da Faculdade por volta de dez ou dez e meia da noite do dia 31, já estava em marcha aquele movimento. Tinha o Savoy, e do lado, tinha uma agência da Italcable, que era uma agência internacional onde você falava por telefone, pois não se tinha telefone como a gente tem hoje. E quando eu parei para tomar um café no Café Nicola, que era colado ao Savoy onde tinha essa agência, vi um carro do Exército por lá. Isso já era quase onze da noite. E estava o General Justino Alves de Bastos, que era o comandante do IV Exército, falando com Jango ao telefone. E como ele falava muito alto, então dava para ouvir o seguinte: “Presidente aqui está tudo bem e está sob controle. Não se preocupe, Presidente”. E eu fui embora para casa dormir. E no outro dia quando acordei, haviam muitos tanques nas ruas, para todo lado que se ia. E fui para a Universidade. Quando chego lá, como não havia aulas, volto e me encontro com a famigerada passeata estudantil de protesto. A gente saiu da Faculdade sem saber de nada do que estava acontecendo e não havia uma liderança que estivesse ali conduzindo a passeata, que     começou por geração espontânea ali na rua do Hospício, onde tinha a Escola de Engenharia de Pernambuco.
         E a passeata vai seguindo e engrossando de gente. Dizem que o Partidão arregimentou. Eu só sei que a gente andou descendo a Rua do Hospício, pegou a Rua da Imperatriz e foi seguindo. E a partir do momento em que a gente ia passando pela Rua da Imperatriz os comerciantes iam fechando as lojas. Iam fechando porque tinha policiais por todos os lugares. A Dantas Barreto estava praticamente isolada. E tinha três bandeiras que iam passando de mão em mão até quando a gente chegou no Brahma Chope, um bar que havia na Dantas Barreto, ali tinha barricadas. E eu me lembro que eu ia com uma dessas bandeiras, com mais duas pessoas ao meu lado também portando bandeiras. E vínhamos cantando o hino nacional. E quando a gente dobrou a Rua Nova e em frente à Igreja, aí que a gente viu que estava tudo fechado e soldados com ninhos de metralhadoras. E a gente queria chegar ao Palácio para apoiar Arraes. Mas era coisa de menino.
         E aí aparece um militar e diz: “Alto lá!”. E um outro: “Preparar. Fogo!”. Aí quando a bala comeu, evidentemente eu sacudi a bandeira no chão e corri. Eu só sei que quando corria vi duas pessoas caídas no chão. Eu não sabia quem era porque eu conhecia poucas pessoas ali. Acho que ninguém conhecia ninguém. Só o pessoal que era muito militante do Partidão é que sabia quem estava ali. Porque das cerca de trezentas pessoas que estavam ali se eu conhecesse dez era muito. E aquela passeata foi uma coisa dispersa e sem coordenação alguma. Então era uma maluquice.
         Embora fosse uma passeata que saiu da Escola de Engenharia, havia muita gente do movimento secundarista. Mas o grosso mesmo cresceu por geração espontânea. Como era o único grupo que estava protestando na rua por algo que ninguém sabia o que era, a passeata foi engrossando, composta, possivelmente, por cerca de 90 por cento de estudantes. E antes de chegar ao Palácio, quando sacudi a bandeira no chão e saí correndo, eu estava tão desnorteado que peguei a 1º de Março. E aí vem a Polícia com a Cavalaria.
         E quando eu vou correr de volta e chego à Duque de Caxias para tomar a Rua Direita, onde morava numa república de estudantes. Na esquina na Praça 17 tinha um café (que vendia cafezinho, café em pó e em grão) que estava fechado. E sentado junto a calçada nesse café parou uma menina com um furo acima do peito de onde o sangue espirrava, como um esguicho. Eu parei e dei um lenço pra ela. E a cavalaria aparece na esquina da Pracinha no início da Duque de Caxias. Aí eu corro, pego a Praça do Livramento e desço a rua Direita, que era onde eu morava. Subo a escada da república e me guardo lá em cima. Havia uma escada grande naquele número 74, e a gente almoçava no 78. Aí eu subo lá e me aquieto. Não tem aula. E eu ainda era bancário, mas tudo estava fechado.
         E eu resolvi ir para o interior, porque havia muito tempo que eu não ia em casa. Nessa época, o ônibus passava por Socorro. Aí tem uma batida do Exército, com todo mundo de baioneta na mão e pedindo documento de todo mundo. Quando eu coloco a mão no bolso não encontro meus documentos. Eu tinha perdido na passeata quando sai correndo. Eu não tinha um documento de identidade sequer. Aí o sujeito pulou a fila do meu banco e foi para a seguinte. Eu fechei os olhos e me senti aliviado. Mas o resultado é que fui para São José do Egito e passei três dias por lá.
         Aí, quando voltei é que fui acompanhar o que estava acontecendo: Arraes estava preso, o Presidente do Sindicato dos bancários, José Raimundo, estava preso. Era batida em tudo e em qualquer lugar. Os Diretórios fechados. Era um inferno e um caos. Mas eu voltei e não tinha nada contra mim.
         Isso foi em 64, eu só fui presidente do Centro Acadêmico em 1965. Antes, eu era representante de classe. Mas na Católica logo no início do golpe de 1964, que eu saiba por conhecimento, várias pessoas foram presas. E também porque 1964 foi ruim logo no início. Ruim, mesmo, foi em 1968. E o período de 65 e 67 com as grandes passeatas e de protestos também foi muito conflituoso, cheio de gente desaparecida. E a gente tinha pouca informação. Eu me lembro que quando estourou a bomba do aeroporto, em 1966, eu ainda era estudante e estava na Manchete como estagiário. Já estava na redação mas não era contratado. Mas foi em 1967 (não foi 1968???), quando eu já estava formado e era funcionário da Manchete, que se prendeu o Zaratinni e o Ednaldo em função desse atentado do aeroporto. E Alexandrino Rocha era o chefe de reportagem, quando me disse: “Vamos lá no DOPS que tem dois engenheiros presos. Eles são acusados de terem colocado a bomba no Aeroporto”. Moacir Sales era delegado do DOPS. Quando a gente chegou lá estavam os dois no pau de arara. E muito castigados. E muitos anos depois, já no Jornal do Commercio, o Zaratinni disse a mim: “Nós nunca tivemos nada com aquilo. Eu já botei fogo em canavial, agitei, mas bomba no aeroporto, não! Nós sabemos quem foi e o cara não se acusa. Nunca se acusou, não assumiu e nos não vamos dedura-lo”. Mas Ednaldo e Zaratinni não tiveram nada com aquilo.
         Quero com isso dizer que em 68 a coisa ficou feia mesmo. Mas até 66 dava pra conviver. Era ruim, mas piorou muito, inclusive na universidade. Eu saio de lá em 1966 quando já estava um clima ruim. E algumas pessoas nossas que tentavam voltar à faculdade como portadores de diploma, os padres não aceitavam. Teve um colega meu, o Rosalvo Melo, que foi cassado pelo 477, que não conseguiu terminar o curso dele. E graças a Deus nesse período eu estava fora. Acompanhei à distância, e depois que eu fui embora para o Rio de Janeiro, aí que eu perdi o contato.
         Até Jarbas Passarinho ser Ministro da Educação e acabar com os Diretórios Acadêmicos ao enfiar goela abaixo um bocado de interventores, os estudantes ainda eram os porta-vozes da sociedade. Eles quem discutiam as questões do país, eles quem iam pra linha de frente. Bosco Tenório foi candidato a vereador enquanto estudante. Ele foi eleito com o discurso, pois não havia ainda a Lei Falcão que impedia as pessoas de falarem. E teve uma repercussão nacional aquele movimento de 1968 com Vladimir Palmeira, José Dirceu e outros, que de certa maneira contaminava o resto das universidades brasileiras. E nos centros maiores como Recife, Salvador ou Fortaleza isso também tinha um efeito de motivar o pessoal.
         Os jornais ainda não tinham uma censura total, mas de alguma maneira se auto-censuravam. Eram os estudantes que falavam, que metiam a boca para criticar e denunciar, distribuíam panfletos. E por que os jornais cobriam isso? Porque de certa maneira eles estavam criando algum fato político novo. E estudantes desses Diretórios muitos atuaram na política, cresceram e viraram figuras nacionais. Tinha um amigo meu, João Bosco Braga Barreto, que era um dos chamados “dois Boscos da Católica”, terminou sendo senador pela Paraíba. Bosco Tenório foi vereador. Cadoca terminou quase prefeito de Recife, hoje é deputado federal. Esse pessoal veio do movimento estudantil. Edilton Santana Florentino quase foi deputado estadual e também veio do movimento estudantil. E muita gente aí, que se não teve mandato efetivo, atuou em Secretarias de Estados, de Prefeituras ou de Ministérios. Por exemplo, Gustavo Krause era considerado de direita, e até o acusavam injustamente de ser do CCC, terminou Ministro da Fazenda e depois do Meio Ambiente.
         Havia lideranças fortes do movimento estudantil que cresceram aqui em Pernambuco, na Paraíba e em todo o Brasil. O Roberto Freire não foi um nome forte do movimento estudantil, mas ele fez parte. Todo o pessoal de esquerda foi para o MDB, porque a Arena era um partido do governo. Então, a oposição foi para o MDB.
         Em 1965, pelo menos na Católica, os diretórios estavam mais acomodados. Eu não saberia dizer se pelo perfil, porque houve intervenção dos Diretórios. Alguns mais à esquerda foram afastados. O Edir Peres, que hoje é vice-Prefeito de Jaboatão dos Guararapes, aqui em Pernambuco, era presidente ou vice-presidente do Diretório de Economia da Católica. Mas em 1966 é que vieram as passeatas estudantis. Eu me lembro que estava como estagiário da Manchete, e fui cobrir uma delas. Era repórter recém-formado e free-lancer. E uma colega nossa que certamente você deve conhecer por nome, Helena Beltrão, foi presa. E o Diretor da Sucursal tinha uma ligação muito grande com os militares, primeiro porque ele era cunhado e sobrinho de militares. A irmã dele foi casada com um coronel da Aeronáutica, que foi barbaramente assassinado por um doente mental em Natal. Ia passando, o cara pediu um trocado ele não deu e o deu uma facada na barriga dele e o matou. E ainda tinha um almirante que era amigo do Diretor da Sucursal. Helena foi presa na passeata. Foi cobrir a passeata e terminou sendo presa, na Igreja de Santo Antônio. Foi o Diretor quem a soltou.
         Passeatas de estudantes em 1965, foram uma constante. Eram movimentos de protesto, inclusive de solidariedade. E nisso a policia ia pra rua. Mas eles avisavam: “A polícia vem aí”. Mas como era um negócio muito descoordenado, porque quando eles avisavam a polícia já tinha chegado. Só que os estudantes começaram também a reagir. Comprava-se bola de gude, comprava-se cortiça. E com as bolas de gude o cavalo pisa, dança e acabava-se derrubando muitos cavalarianos. Eu me lembro muito das bolas de gude porque me deram um saco grande de bolas de gude e eu joguei no asfalto derrubando vários cavalos.
         Havia muitas passeatas mesmo entre 1965 e 1966. Então o movimento era descoordenado, mas mesmo assim não morria. Tinha sempre alguma coisa acontecendo. Havia, protestos dos estudantes, por exemplo, porque não havia vagas mesmo quando se passava no vestibular, o que ficou conhecido como o movimento dos excedentes. Então, tinha passeata para todo canto. Por exemplo, quando ficavam sabendo que havia excedentes no curso de Medicina da Federal, então todo mundo de todas as faculdades ia fazer um protesto a favor dos excedentes.
         E isso criava um clima, porque mexia com a cidade inteira. A sociedade e a grande massa calada tendia a apoiar os estudantes. “A garotada tem razão”. E os jornais cobriam esses movimentos. Se você for pegar as coleções de jornais da época, poderá ver a cobertura de tudo isso, mas não verá nenhuma nota nem favorável ou contrária, pois tudo era absolutamente neutro. Seria como se a imprensa dissesse: “eu não tenho nada com isso. A minha obrigação é cobrir os fatos”. E foi assim com os movimentos estudantis até a morte de Edson Luís no Restaurante Universitário Calabouço, no Rio de Janeiro. E aquilo foi muito forte. E as passeatas não foram só de estudantes, não. Porque quando os estudantes foram às ruas, também se conseguiu mobilizar, inclusive, trabalhadores. Eu me lembro que era muita gente na rua, principalmente na pracinha do Diário, ficou coalhada de gente. E o pior, na época, tanto na rua Imperatriz como na rua Nova, era um corredor de passagem que bloqueava o trânsito da cidade.
         O Exército às vezes mandava ordem para os jornais ter cuidado com os excessos. Em 1966 eu já estava no Jornal do Commercio quando recebíamos do Governo Federal essas informações. O homem da 5ª Sessão que cuidava desse negócio, recomendou que tivesse cuidado com isso. E havia paralelamente a figura de Dom Hélder, bem como do bispo de Cretéus, o Dom Antônio, que mandava muita coisa de protesto do Ceará. Esse bispo ficou uma persona non grata pelo Exército, pelas autoridades e por todo mundo. E ele não se calava.
         Dom Hélder não tinha uma relação cordial com os jesuítas, não. E havia sido convidado diversas vezes para dar uma palestra na Universidade Católica de Pernambuco, mas só foi uma vez. Eu e Helena Beltrão, aquela que foi presa fazendo a cobertura na Igreja de Santo Antô que foi presa fazendo a cobertura na Igreja de Santo Antmana. manha. o com cerca studantes. sta.  nio. Dom Hélder tinha voltado da Europa e foi fazer uma palestra na Católica. Juntou gente que saia pelo ladrão. Ele falava por metáfora, pois nunca falava diretamente. Falava assim: "Quanto mais escura é a noite, mas reluz o santelmo ". Mas ele não deixava de criticar os militares. E nós gravamos tudo isso, que foram mais ou menos umas três ou quatro horas de fita. E tiramos essa palestra da fita quase cinco horas da manhã e mandamos para a Manchete, no Rio. Mas a Manchete usou apenas uma parte. E que eu me lembre foi a primeira vez que Dom Hélder foi à Católica fazer uma palestra, embora tivesse sido convidado inúmeras vezes, ele sempre declinava. Dizia-se que ele não tinha um bom relacionamento com os jesuítas. Até porque os jesuítas não eram subordinados a ele. A irmandade era comandado pelo Padre Pedro Arrupe, que eles chamavam de “Papa Negro”. Nem do ponto de vista de cordialidade parecia haver algo entre os jesuítas da época e Dom Hélder. Ele era muito avesso a fazer palestra lá na Católica e a aceitar convite de estudantes. Mas, só sei que dessa vez ele aceitou. Eu não sei das razões do aceite, porque ele era meio refratário, não respondia esse questionamento.
         Mas aí eu fui cobrir o que ele falou. E me admirei, porque ele fazia uma profissão de fé na juventude dizendo assim: “Esse país é de vocês. São vocês que vão cuidar do nosso futuro. São vocês que vão ver o mundo novo”. Ele dava muito recado sem nominalmente se colocar contra o sistema, mas ao mesmo tempo dizendo “eu não aceite isso”. Ele também fazia um programa na Rádio Olinda e, se alguém for pegar os programas lá no arquivo, perceberá que ele sempre mandava seu recado por metáforas. Eu seu que foi muito interessante esta palestra dele, porque os estudantes fizeram muitas perguntas. E ele respondeu tudo, tanto que passou da meia-noite, muito além do tempo previsto. E tem uma foto interessante minha cobrindo isso com o gravador na mão. Eu era magrinho. Um repórter do JC foi cobrir na época, eu era da Manchete, e me fotografaram lá. Eu estou de um lado e a Helena do outro.
         Eu cobri a morte do Padre Henrique desde o início. Soube disso a noite um dia antes de ser amplamente divulgada na imprensa. Tinha um repórter chamado Nilson Pereira, Lina, que era do Diário da Noite. E ele tinha fama de ser meio cascateiro. Mas, era um grande repórter. Às vezes ele pegava a informação, mas antes de apurar já dava aquilo como certo. A gente estava tomando um chope no TPN, o Teatro Popular do Nordeste. Eu era da Manchete e ele do Diário da Noite. E ele virou-se pra mim e disse: “Ivan (ele me chamava de Ivan), eu tenho uma informação de que mataram um padre aí ligado a Dom Hélder”. E eu perguntei: Um padre ligado a Dom Hélder? Quem te deu essa informação?”. E ele: “eu ouvi isso de um policial”. E eu fui dormir com aquilo na cabeça. E no outro dia de manhã não tinha nada. E por volta de dez da manhã eu fui para a Manchete e falei pra Ronald de Carvalho, que já era o chefe de Reportagem e tinha vindo do Rio. Aí falei: “tem um boato aí de que mataram um padre ligado a Dom Hélder”. E ele: “vai apurar! O que está esperando!”. E eu fui apurar esse negócio. E quando eu cheguei na delegacia o rádio confirmou. Mas não dizia que era um padre. Mas que tinha sido encontrado um corpo, desconhecido, num terreno baldio da Cidade Universitária.
         Naquela época a cidade universitária estava começando, era mato pra diabo. E eu peguei o carro da Manchete e fui pra lá. Quando cheguei lá já tinham retirado o cadáver. Mas já está confirmado que era o Padre Henrique. Aí eu entrei de cabeça na cobertura. E eu tive uns dois dias para fazer isso. Refiz os passos dele e acompanhei o enterro, que foi uma comoção. O enterro foi no cemitério da Várzea, mas a missa de corpo presente foi na Igreja no Espinheiro. Esse corpo saiu de lá até o cemitério da Várzea. Então, imagina o trajeto. Nós viemos pela Ponte Velha na Torre, que não existe mais. Até chegar na Várzea. E eu acompanhando com um carro da Manchete e um fotógrafo. Quando chegamos na Ponte da Torre estava a Polícia, dizendo: “Não passa”. E Dom Hélder levantou o caixão e disse: “Vai passar. Ninguém reage”. E cantou o hino nacional. E as pessoas: “Ouviram do Ipiranga....”. E passou. Eu já estava ali profissional e não podia me envolver. E duas ou três vezes a tropa da polícia tentando impedir, mas o caixão continuava prosseguindo. E Dom Hélder sempre dizendo: “Meus filhos não aceitem provocações, não aceitem provocações”.
         E quando o cortejo chegou lá na Várzea, não teve discurso. Baixaram o caixão e todo mundo acenando um adeus com lenço branco. E foi um negócio que mexeu com todo mundo, que calou as pessoas. Eu até encontrei algumas colegas que tinha tido na universidade, pois alguns ainda não tinham se formado ainda. E não se falava de outra coisa. Encontrei um colega, meu conterrâneo, chamado Edson Augusto, que é advogado hoje. E aí eu perguntei: Oh, Edinho, você conheceu esse padre”. E ele: “Conheci, ele foi meu colega de Seminário no curso de Filosofia”. Edson tinha deixado a batina. E me disse: “Esse padre não fazia mal a ninguém. Ele trabalhava com Dom Hélder o tempo inteiro”. Aí eu fiz três reportagens seguidas. A primeira, imediata, foi para Fatos e Fotos, que era a revista que circulava primeiro. Aí fiz uma maior e mais completa para a revista Manchete. E foi aí que eu refiz os passos deles, como o que ele tinha feito no dia anterior. Ele esteve em Parnamirim com uma família. Depois entrou numa camionete verde... eu refiz todos os passos dele até chegar no principal suspeito, que se chamava Rogério. Até hoje não se tem nenhuma dúvida de que esse Rogério não teve nada com aquilo. E não se tem nenhuma dúvida de que ele foi morto pelos órgãos da repressão. Foi um ato muito mais para atingir Dom Hélder do que o próprio Henrique, que era um padre apagado, no sentido de não ser brilhante e não ter toda uma liderança. Era só um oficial de Dom Hélder. Então, eles quiseram atingir Dom Hélder matando o padre.
         Dom Hélder ficou proibido de falar. Eu trabalhei na TV Globo e, por ordem do Doutor Roberto Marinho, era proibido citar o nome dele, seja a favor, seja contra. Ele não aparecia na imprensa. Sebastião Barbosa, que foi fotógrafo da Manchete na minha época e estava comigo nessa cobertura, e que hoje tem um estúdio fotográfico em Petrópolis, fez uma foto de Dom Hélder saindo da Igreja com os braços abertos e uns pombos vindo em direção a ele. Que ate parecia um quadro montado. Justino Martins publicou essa foto na Manchete. Só a foto. E no outro dia estava na Manchete o Cenimar, lá no Rio de Janeiro. Eu estava lá no Rio quando ocorreu isso.
         Então era proibido falar no nome de Dom Hélder, e nos jornais locais era a mesma coisa. Não é que ele não queria falar. Ele não podia. Era zero qualquer informação sobre ele. Os jornais de Pernambuco não chegaram a tirá-lo do noticiário, mas resumiam em muito as notícias acerca dele. Por exemplo: “Dom Hélder esteve ontem celebrando a missão de aniversário do município”. E só.
         Depois que eu saí da Manchete, fui coordenador de um programa na Rádio MEC. E tinha uma portaria do Ministro Ney Braga proibindo tocar qualquer música de Chico Buarque de Holanda. Você imagina em relação a Dom Hélder. E isso valia para a TV Educativa, onde eu trabalhei, também. Não é que a gente não queria. Era ordem superior.
         Na Manchete havia um censor, que era da Marinha. Mas o coitado ficava todo deslocado lá. Ele dizia: “eu vim pra cá para fazer o que, eu não sei. Eles me mandaram, e como eu obedeço ordens, vim.”. Ele ficava lá sentado. E como o pessoal da Manchete era muito irreverente, num belo dia, numa das sextas-feiras em que a gente saía, na hora do almoço, para tomar uma caipirinha num bar que tinha na esquina chamado Uiki Bar. O capitão ficou lá. Tinha um colega nosso, o Alberto Carvalho, que não valia nada como se diz brincando, e como ninguém sabia o nome do capitão, o Alberto disse: “Ô do boné, vem cá”. E fomos todos para o bar. Dali a pouco o pobre do capitão já estava íntimo. E terminaram tirando o cara dali, porque ele mesmo se convenceu da sua inutilidade na redação da Revista Manchete: “eu não tenho nada que fazer aqui”. Até porque a Manchete não falava contra ninguém, era uma revista permanentemente governista, só mostrava a coisa bonita. O capitão ficou uns dois meses por ali, e certamente chegou a conclusão de que estava perdendo tempo, não tinha nada estar fazendo ali e foi embora cuidar da vida dele.
         A minha geração foi muito influenciada pelo Governo de Juscelino, o que nos dava a sensação de que o Brasil tinha futuro. E Brasília foi um símbolo. O país era essencialmente agrícola e a população estava migrando para as cidades. Então eu achava e muitos outros da minha terra que vieram depois e que até chegamos a morar juntos, todos nós achávamos que o Brasil ia crescer e tinha um futuro. Sobretudo quando víamos o estouro de Brasília, o Brasil fabricando automóveis, gerando energia. Então se pensava: “Essa é a nação do futuro. Nós vamos estudar, vamos ter lugar para ganhar muito dinheiro e ficar rico”. Havia aquela visão de que se estava mudando o perfil do país. De certa maneira estava. A grande migração do campo para a cidade vinha disso aí.
         No final dos anos 1950 e início de 1960 Brasília teve muita influência nisso. Eu me lembro de colegas meus que viviam na zona rural de São José do Egito. Um deles se chamava João. E como todo mundo tinha apelido o dele era João Boca Larga, pois tinha um bocão. João foi para Brasília como peão de obra. Depois, fez algum dinheiro e comprou um caminhão. Em Brasília mesmo, começou a transportar areia para uma das construtoras. Esse cara ficou rico, chegou a ser dono de hotéis.
         Havia uma chance de você crescer ou uma esperança de que o Brasil estava mudando e tinha chances para todo mundo. Era esse o discurso de Juscelino, que o golpe de 64 matou, mas que começou a morrer com aquele interregno de Jânio Quadros. A estudantada votou em Jânio. Eu não votei, porque tinha dezessete anos quando Jânio foi candidato. Mas a minha geração quase toda votou nele. Mesmo com o Partido Comunista apoiando o General Lott aqui na capital, Jânio era o candidato das massas. E essa frustração com Jânio foi uma coisa ruim para a juventude da época.
         Havia, então, essa perspectiva de que “esse país agora vai”, ou “o futuro não é no campo mas nas cidades”.
         Aqui você tinha cursinhos que preparavam para o vestibular. Tinha um para Direito que era o Torres, que era concorridíssimo, ficava na Dantas Barreto e num edifício chamado Santo Albino. Fui me inscrever, mas era muito caro, a metade do que eu ganhava no banco. Eu não podia fazer, porque era muito caro. E precisava fazer, porque o meu latim era muito ruim. E no vestibular de Direito, o latim era provavelmente a cadeira mais difícil, porque se tinha de fazer prova escrita e oral. E todo mundo decorava as catilinárias de frente para trás: Quoesque tondem Abutere, Catilina, Patientia Nostra. E tinha o cursinho Pernambuco de Química, Física e Matemática, para quem queria fazer Engenharia. Você não tinha também muitas opções de cursos como você tem hoje. E também não tinha múltipla escolha, nem esse negócio de marcar quadradinho. Você sabia ou não sabia. Você fazia prova de português para a Faculdade de Direito oral e escrita. Era o terror da garotada que ia fazer vestibular.
         Eu me lembro de um caso famoso, não me lembro se foi com o Professor Almeida, que pegou um estudante lá e disse. “Fale sobre Cícero”. E o estudante: “Cícero é o pai dos literatos romanos, foi um grande orador, mas tem um discurso muito seco”. Então, o professor começava a gozar o cara. E o cara começava a se perder. Aquilo era cruel. E também eram cruéis os professores. Então todo mundo tinha medo das provas orais, principalmente de português e latim. As outras dava para se levar, se enganava e tal. Mas latim era fogo.
         Na Católica não tinha prova oral. Tinha prova escrita. A redação de português valia seis pontos. Se fizesse uma boa redação, já garantia a sua aprovação, mesmo com cinco. Eu me lembro que o tema da redação era sempre escolhido com temas subjetivos. O tema da redação da minha turma do vestibular foi o seguinte: “O mundo é melhor e mais feliz porque eu vivo”. Eles sempre pegavam um tema meio filosófico. E quando eu prestei o vestibular eu passei em terceiro lugar. O primeiro lugar foi uma moça chamada Maria Diva Pessoa de Souza, que hoje trabalha na Editora Vozes, lá em Petrópolis. E em segundo lugar foi Helena Beltrão. Nós éramos uma turma de cinqüenta. Concluímos com quarenta e seis.
         Até 64, a classe média que morava na periferia das grandes cidades tinha um sonho: ou se formar ou entrar para as forças armadas. Fazia-se concurso para sargento, para a Escola de Sargentos da Aeronáutica e tantos outros lugares. Havia um orgulho de vestir uma farda, que significava com isso ganhar uma namorada ou entrar em qualquer lugar. 64 acabou com esse troço. Foi tão ruim para a sociedade brasileira como um todo, que desestimulou a juventude a ingressar na Marinha, no Exército ou na Aeronáutica. Muito tempo depois se vê como o Exército se preocupa em fazer propaganda e colocar anúncios na televisão chamando para suas fileiras. Não há mais aquele encantamento. A carreira militar não deixa de ser uma carreira democrática, porque se pode entrar lá como soldado raso e terminar como general. Se você for competente e ninguém te atrapalhar, é possível chegar no último posto da carreira. O golpe de 64 envergonhou a juventude. Então ter um irmão coronel era constrangedor, as pessoas diziam “sai de perto de mim. Seu irmão é capitão e eu não quero nada com esse cara”. Nós éramos assim, e essa ojeriza à farda continuou por um bom tempo.
         Vinte e um anos de ditadura não foram brincadeira, não. Pois anestesiou e acabou com a força do movimento estudantil. Os Diretórios Acadêmicos, que eram fortes, arregimentavam as faculdades. Se você tivesse oposição e ele rachasse, mas não deixava de movimentar as universidades. Outra coisa que eu acho que colaborou pra isso foi a reforma universitária, porque não se tem identidade com os colegas. Meu filho é formado em Engenharia de Software, na Federal. Os amigos que ele tem hoje são os amigos do curso médio. Porque ele não tem intimidade com um cara de lá, porque cada um “paga” uma cadeira num horário diferente. Formaram-se trinta e poucos, na turma do meu filho, e eu fui para a formatura dele. E nunca um colega de Pedro Henrique que se formou com ele veio à minha casa. Só os colegas que tinha no Colégio.
         Então essa falta de identidade até com os seus colegas de turma fez com que o movimento estudantil perdesse hoje a força que já teve no passado. Você entrava numa faculdade num primeiro ano e saía no quinto com todo mundo junto. Você conhecia os gostos, o perfil político, as irmãs e a família dos seus colegas. Era uma interação muito maior. Isso se acabou. O seriado, que com a reforma universitária obrigou você a pagar cadeiras, provocou esse distanciamento. Como você vai votar num cara para Presidente do seu Diretório sem conviver e sem ao menos saber quem ele é? Você questiona: “Esse cara é do meu curso? Qual a cadeira que ele paga?” Isso esvaziou a liderança do movimento estudantil, também. Porque você constrói a liderança com dois ou três anos de convivência. E aí, sim, irei poder dizer: “Eu vou votar em você”. Hoje isso não existe.
         Mas uma coisa é certa: Os jovens hoje são totalmente diferentes daqueles da minha juventude. Nós temos uma juventude sadia e muito preocupada com tecnologia, mas também muito egoísta. E infelizmente com pouco embasamento em valores morais.
         Eu fiz um curso agora de gestão lá em São Paulo com Oscar Motomura, que eu conheço há mais de quinze anos. A empresa, desde o início, na presidência de João Carlos Paes Mendonça, o contrata para dar palestras, aqui e em São Paulo. Ele é hoje uma referência mundial. E o Oscar passou nessa semana que ficamos lá gastando um bom tempo resgatando essa coisa que as pessoas precisam ter: a preocupação não apenas com a sua rua ou com seu Estado, mas com o mundo. Com valores morais.
         O desperdício da água é um exemplo. Ele nos deu o Estatuto da Terra, que ele próprio ajudou a redigir. Éramos todos ali de empresas, seja de estatais, de transnacionais ou nacionais ouvindo coisas como essas, não só nas palestras de Oscar, mas também de outros consultores. E que traziam questões como: é certo a gente prestar serviço para um grupo que a gente sabe que umas de suas empresas tem trabalho escravo ou semi-escravo? E você se sente confortável nisso? Quer dizer, hoje a garotada não está preocupada com isso, mas pensando muito em si. Talvez seja uma coisa que precisa ser revista, porque quando você herda os valores de casa são para toda a vida.
         As universidades e os colégios precisam puxar isso para a educação e para o ensino, no sentido de fazer a juventude repensar o seu papel na sociedade lendo Filosofia, Ética, Meio Ambiente e outros temas. Meu filho, que se formou em Ciência da Computação, tem na sua casa livros sobre os mais diversos temas, inclusive Manuel Bandeira. Ele tem uma visão humanística que normalmente a garotada com a formação dele não tem. E acho isso um problema para a juventude. Lá no jornal, muito gente entrou ali pela minha mão ainda estudante.
         Quando comecei a trabalhar em jornal, nós sempre nos confraternizávamos nas sextas-feiras. E não era coisa de jornalista beberrão porra nenhuma! Saíamos para conversar. E nessa garotada, hoje, eu não vejo isso. Saem somente com a namorada, transa, fica. Então é muito diferente. É saudosismo? Não. É porque você gostava de viver daquela forma, confraternizando, conversando.
         A minha juventude não pode ser comparada em termos de valores com as outras. A gente ganhava pouco mas era divertido. Eu tinha uns amigos que saímos do jornal quando solteiros após a meia-noite e íamos jogar sinuca até as duas da manhã. E depois íamos jantar numa cantina na Boa Vista, indo dormir lá pelas cinco da manhã, porque somente íamos iniciar o trabalho por volta de uma da tarde. Mas com essa vida fazíamos amizades que perduravam. Hoje o pessoal é mais egoísta, mas como o mundo mudou, a juventude também mudou.
         Para os que hoje querem se enveredar pelo Jornalismo, diria que é preciso ter uma preocupação com os valores morais. Não é só saber dominar o computador e fazer pesquisa por meio da consulta a sites de informação para dar a notícia. É preciso ter um padrão ético, ou seja, ter consciência de que nós temos um dever para com a sociedade. E que Jornalismo é um serviço público, sendo assim, não está a serviço de grupos ou de interesses pessoais. Jornalista é um bicho arrogante. É preciso acabar com essa arrogância. Eu sempre digo isso quando vou fazer uma palestra para estudantes, ressaltando ainda, que se precisa ter a consciência de que a fonte é muito mais importantes que eles. 9488-3713
         Eu me lembro que fiz uma entrevista, certa vez, com o Doutor Cid Sampaio, na TV Globo, que durou cerca de 35 minutos e que me deu um trabalhão danado. E às oito horas da noite ele me liga desistindo de divulgar a entrevista. Eu perguntei a mim mesmo: “E agora?”. Um espaço de três minutos para substituir dá trabalho, imagina trinta e cinco minutos. E eu liguei para o Diretor de Jornalismo da TV, Armando Nogueira, dizendo: “Estou com uma entrevista do ex-Governador Cid Sampaio, com trinta e cinco minutos, que ia botar no programa de encerramento. Mas, Doutor Cid agora está dizendo que não quer divulgação à a entrevista”. E perguntei: “Posso colocar?”. Armando disse assim para mim: “Não pode! A entrevista não é sua, mas é dele. Se ele não quer, então você não tem o direito de divulgar”. Aí eu abaixei a cabeça e aprendi essa: a entrevista não é do entrevistador, mas do entrevistado. Se ele não quer falar, então qual o direito de você colocar ele no ar? Nenhum.
         Mas a garotada não pensa assim, porque às vezes desrespeita até o off, o que é um crime não se respeitar o off. Nunca se deve entregar a fonte, e também é fundamental não deixar entender quem foi que deu a informação, pois aí vai ficar desacreditado. E com isso nunca mais vão dar uma entrevista, por não confiar em você. Uma coisa que eu não gosto, mas que é difícil de evitar é o seguinte: que os repórteres façam entrevista por telefone. Acredito que se deva entrevistar olhando o cara no olho, para saber o que ele está dizendo e para ver se ele não está mentindo ou se está piscando o olho tentando se esconder. Mas, se faz entrevista por e-mail ou por telefone porque a fonte está longe. Nesse caso, portanto, é prudente ter o cuidado ao se fazer as perguntas, que têm de ser técnicas e frias para que as respostas não traduzem sentimento. Então é isso aí, que a gente tenta que passar para a garotada, mas que é algo que vai se aprendendo com a experiência e com a vida, e que alguns não estão preocupados com isso, não.
         A coisa mais importante de tudo isso é que nós, de minha geração, fomos de um ponto de transição: deixamos de fazer um jornalismo que era romântico e nos tornamos de fato jornalistas profissionais. O jornalismo passou a ser uma atividade para a qual você se dedica e o qual sustenta a sua família. Eu não faço jornal por causa de uma cachaça ou de uma conversa, mas porque o jornalismo é a minha profissão.
         Por fim, vivemos hoje uma violência mundial, porque cada vez se tem menos oportunidades e segurança no trabalho, temos as periferias das grandes cidades cada vez mais inchadas e uma sociedade com mais pobreza e desigualdade, sem falar que temos uma educação deficiente. Lula falou aqui em Pernambuco que vai fazer um milhão de casas. E ninguém contesta isso quando ele fala, mesmo sabendo que não tem tempo, não tem dinheiro e nem tem projeto. Então, porque ele não fala que vai criar dez mil escolas? Seria muito mais fácil. Então passa por aí, também. Há uma inversão de prioridades, e é por isso as coisas estão erradas. Ainda temos insegurança, com essa disputa pelo mercado de trabalho. Você vê esse negócio dessa pernambucana na Suíça, que ninguém sabe o que realmente aconteceu. O que se sabe é que houve ali, uma votação e 40% dos suíços são contra os estrangeiros no país, porque tomam o emprego deles. Você imagina isso na Bósnia?
         Uma mensagem que deixo para a juventude é que acreditem nesse País, porque ele tem futuro. E que o resgate das nossas dívidas sociais depende da participação da juventude. Eu vejo aí garotos e garotas extremamente produtivos, e com visão do futuro, não só no Jornalismo, mas noutros setores, nos amigos do meu filho ou da minha filha, que são extremamente compromissados com uma visão de futuro. Acho que é preciso acreditar; não numa utopia qualquer, mas a partir da análise crítica da realidade que precisamos pensar e trabalhar para que nossos sonhos sejam extremamente factíveis.
         Um país com todas essas riquezas, como é o caso Brasil, precisa deslanchar, chegar melhor naquilo que efetivamente precisa. Não adianta ser o maior país da América Latina, porque o que importa é que esse País cumpra as suas obrigações com os seus concidadãos e que faça os brasileiros se sentirem felizes. Os jovens podem caminhar nesse sentido e ajudar a atingir isso.
         O fato de eu estar dando essa entrevista e mostrando a experiência que eu vivi, significa que alguma lição pode ser extraída daí. Não sei se foi boa ou foi ruim, mas foi uma experiência pelo menos legítima. Por tudo que passei, o que posso dizer é que não me arrependo de nada do que fiz. Nada!
         Se eu tivesse que recomeçar a vida começaria sendo jornalista. Foi a profissão que me trouxe satisfação, gosto dela e não sei fazer outra coisa e nem quero saber. Fui bancário num momento por uma contingência, ou seja, para pagar a faculdade. E exerço a minha profissão a quarenta e dois anos de forma absolutamente tranqüila, pois nunca me deu dor de cabeça ser jornalista. Eu trabalhei em grandes empresas, como foi o caso da Bloch, que na época era uma das maiores do país. Trabalhei na Rádio MEC e na TV Educativa, fui repórter free-lance do Diario de Barcelona. Também trabalhei na TV Globo, que ainda é a maior rede televisiva desse país. Trabalhei pouco tempo nos Diários Associados, que sem dúvida nenhuma tem uma história no país, com Assis Chateaubriand. E estou há vinte e dois anos no Jornal do Commercio aqui em Recife, que é a empresa onde pretendo me aposentar. Depois que eu sair do Jornal do Commercio eu não quero fazer mais nada, a não ser brincar com as minhas netas.
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