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quarta-feira, 30 de março de 2011

SÉRIE MEMÓRIA DA UFPE: Depoimento de Marcelo Santa Cruz

DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA E LUTA DOS JOVENS[1]
Marcelo Santa Cruz de Oliveira

            Meu nome completo é Marcelo Santa Cruz de Oliveira. Eu nasci em Recife, na maternidade do Derby, em 14 de janeiro de 1944. Mas sempre residi em Olinda, pois meus pais, Lincoln de Santa Cruz de Oliveira e Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira, residiam, inicialmente, na ladeira de São Francisco. Depois foram para a rua Siqueira Campos no Varadouro, passando em seguida um período em Campo Grande e, por último, retornou em 1952, à rua Manoel de Barros Lima no bairro Novo, onde mamãe se encontra hoje residindo, com 95 anos.
            A minha militância começou muito cedo no trabalho de Igreja. Sou o segundo filho mais velho da minha família, a primeira é a Rosalina, que também teve uma atuação política como estudante e junto à Igreja. A atuação, portanto, foi muito em função do trabalho social realizado pela Igreja Católica. Esse foi o engajamento inicial.
            Posteriormente como estudante, no Colégio São Bento, depois no Colégio Nóbrega e no Colégio Estadual de Pernambuco, a luta reivindicatória empreendida era muito contra o aumento das passagens. Através dessa luta reivindicatória contra o aumento das passagens ou em defesa das justiças sociais, nós passamos a cada dia a ter um engajamento cada vez maior.
            O período que começamos a ter uma atuação foi durante a gestão de Pelópidas da Silveira na Prefeitura de Recife, e de Miguel Arraes, no Governo de Pernambuco, em 1963, que eram governos de contavam com uma atuação para a população num regime de liberdade de expressão, o que de fato se percebia em relação ao debate sobre as chamadas “reformas de base”.
            Foi dentro desse contexto que começamos a ter uma participação. Inclusive, dentro de casa, papai sempre apoiou Pelópidas e Arraes, que eram as forças progressistas que se despontavam naquela época. Por isso talvez tenha provocado dentro de casa um ambiente bastante liberal e estimulando essa participação.
            Talvez a própria atividade profissional de meu pai, a Saúde Pública, seja o tenha o influenciado para uma visão humanística, porque essa questão não ocorreu só comigo e com Rosalina, mas todos os outros irmãos, tiveram um engajamento político, sobretudo Fernando, o quinto dos filhos, que teve um engajamento até maior que os mais velhos tiveram. Rosalina foi presa e torturada, no Rio de Janeiro. Ela teve uma atuação na JUC, mas sua atuação na época que foi presa foi na VAR-Palmares. Foi presa juntamente com o marido, no Rio. Depois em São Paulo ficou um maior tempo presa, no DOI-Codi, em função do desaparecimento de Fernando. Isso foi em 1970 para 1971.
            A minha cassação pelo decreto-lei 477, com a proibição de estudar em qualquer universidade do país, ocorreu em 1969. Inclusive as acusações resgatavam a nossa atuação desde a época de colégio, pois argumentavam que nós tivemos uma educação muito radical e tínhamos um posicionamento ao que eles chamavam de revolução e democracia.
            O ambiente universitário era de muita efervescência. Na época se vivia de uma forma bem intensa a reformulação dos cursos, inclusive dos cursos jurídicos. O que estava em questão era que a Faculdade de Direito formava um bacharel para ser advogado dos grandes escritórios e das grandes empresas, mas que não tinha a preocupação de formar um advogado compromissado com as questões sociais para defender os trabalhadores e a luta sindical. Essa discussão tinha uma influência muito grande do acordo Mec-Usaid dentro da Universidade, que os estudantes se opunham à época, tendo em vista que se buscava colocar em prática o modelo norte-americano. Por isso, acabar com o curso seriado e tornar os cursos por período como hoje são, tal qual como eram nas universidades norte-americanas, foi um dos pontos que acabou entrando em vigor.
            Quando teve o assassinato do Padre Henrique, já estava respondendo a inquérito de acordo com o Decreto-Lei 477 na Faculdade de Direito da Faculdade de Direito do Recife. Um mês antes, no dia 28 de abril, houve o atentado ao Presidente da União dos Estudantes de Pernambuco, o Candido Pinto de Melo.
            Eu me lembro que no dia do atentado ao Candido estava em casa. De madrugada recebi um telefonema me passando a informação de que Cândido havia sofrido um atentado e se encontrava num pronto-socorro localizado na Fernando Vieira. Começamos na madrugada mesmo a mobilizar um maior número de estudantes. Chegamos ao pronto-socorro por volta de seis e trinta da manhã, e já havia um número relativamente grande de estudantes por lá. E eu cheguei até próximo a cama que Cândido se encontrava, quando percebi que estava com uma cobertura no rosto e no braço e estava deitado de lado.
            Também estava lá dentro da sala o Luis Martins Miranda Filho, que era um torturador de Pernambuco com muitas mortes e torturas praticadas aqui no Estado. Ele logo mandou as pessoas se afastarem. Os estudantes num clima de muita revolta.
            Depois cada um saiu e foi para sua Faculdade para levar uma discussão para parar as atividades por causa do atentado a Candido. A Faculdade de Direito, de Medicina e de Engenharia fizeram greve. Um atentado a uma liderança causou um certo rebuliço no movimento estudantil. Talvez essa mobilização dos estudantes e dos médicos que conheciam Candido – eram ex- estudantes de Medicina que se formaram e se encontram trabalhando naquele local – foi o que conseguiu salvá-lo, no sentido de não ser eliminado ali mesmo no hospital. Ele teve toda a assistência. E a Igreja teve um papel importante nessa questão com o Dom Hélder através da solidariedade.
            Um mês depois, no dia 27 de maio, ocorreu justamente o atentado a Padre Henrique, que teve uma repercussão internacional. Aqui nós também conseguimos parar as escolas em greve geral, apesar de todo o clima repressivo que existia à época. A posição de Dom Hélder após a morte de Padre Henrique foi um marco, pois até aí ele tinha uma posição muito progressista, mas a gente percebia que ele abria um espaço para os setores conservadores, também. E apesar dos ataques que ele recebia de Gilberto Freyre, do Corção e de Nelson Rodrigues, que o taxavam de “Padre vermelho”, “Padre de Passeata”, mas a partir da morte de Padre Henrique, a posição de denúncia e de firmeza em relação ao regime ganhou uma nova qualidade. E tornou um negócio até mais acentuado, até porque Dom Hélder tinha a consciência de que aquele atentado ao seu auxiliar era muito mais dirigido a ele. E como não tiveram a coragem de eliminar o Arcebispo de Olinda e Recife., que era uma pessoa conhecida internacionalmente, [resolveram então] eliminar o seu auxiliar.
            Por isso Dom Hélder dizia em uma de suas declarações que a morte de Padre Henrique ele estava tendo o mesmo sentimento de seu sepultamento, ou seja, estava morrendo uma parte dele, pois o Padre Henrique tinha um trabalho fundamental na Pastoral da Juventude com os jovens que estavam tomando uma consciência política. Então, o trabalho do Padre Henrique nesta época era muito mais com os estudantes secundaristas do que com os estudantes secundaristas. Existiam muitos padres que faziam esse trabalho, mas o Padre Henrique era talvez naquela época o padre que tinha a maior identidade e até a missão justamente de fazer um trabalho com essa juventude. Naquela época era a juventude que estava tomando consciência dos problemas sociais. E Fernando, meu irmão, juntamente com tantos outros, fazia parte do grupo que era assistido pelo Padre Henrique. E eu me lembro que no dia da morte do Padre Henrique eu estava sendo ouvido num inquérito sobre o 477, e a primeira pergunta que o encarregado do inquérito, o Professor Antônio Pedro Campelo Barreto me fez foi a seguinte: se eu tinha sido o estudante que tinha denunciado nas salas de aulas o assassinado do Padre Henrique e que estava atribuindo aquele assassinado as forças de repressão do Governo. E eu confirmava que tinha sido eu. E ele dizia que eu tivesse cuidado, pois além de estar respondendo inquérito por várias acusações, eu estava comprovando que aquele padre tinha sido morto por questões políticas. E ele tinha recebido uma informação que o Padre tinha sido encontrado com uma calcinha de mulher. E depois foi constatado que era uma cueca zorba.
            Na morte do Padre Henrique foi uma comoção muito grande. Eu me lembro que na missa celebrada de corpo presente, Dom Hélder, junto com vários padres e freiras saíram para o enterro. E como haviam muitos policiais atuando de forma ostensiva, eram mostrados os crucifixos aos policiais chamando-os de anti-cristo. Foi quando houve algumas prisões. O Oswaldo Lima Filho e alguns estudantes foram presos à época nessa manifestação. E posteriormente foram soltos. Mas a manifestação transcorreu em parte num ato lá sem grande violência. Houve o sepultamento e foi cantada a música “segura a mão do seu irmão”, e “maior perdão não há por quem dá a vida por seu irmão”. E tudo isso causava a nós estudantes uma certa revolta, porque a gente achava que Padre Henrique não ofereceu a vida dele a um irmão, porque ele foi assassinado pela ditadura. E caberia responder àquela violência com a violência dos oprimidos. Mas talvez a morte de Padre Henrique despertou uma resposta violenta ou um caminho de violência em relação às forcas oprimidas contra os seus opressores. Porque foi justamente em 1969 e 1970 que a luta armada alcançou o seu auge, pois a livre expressão não era possível, todos os diretórios foram fechados, os estudantes que tinham qualquer manifestação política foram afastados das faculdades e sem poderem estudar em qualquer outra escola por três anos.
            Na época saiu um manifesto de Dom Hélder que eu utilizei em minha defesa, no qual ele afirmava que o decreto-lei 477 era um ato violento, porque além de expulsar o estudante, ainda o proibia de estudar em qualquer outra escola por três anos. E com isso estava descaminhando os estudantes para a violência. E foi justamente o que aconteceu, porque a grande maioria dos estudantes das Faculdades expulsos pelo 477 que não foram para o exterior e por aqui permaneceram, optaram pela luta armada.
            E sobre essa opção a gente pode fazer uma análise que a conjuntura é outra e se torna muito difícil, mas à época era difícil fazer uma avaliação crítica, porque violência gera violência. E um regime violento daquele que estava implantado, apresentava, para as pessoas que faziam a oposição, o único caminho era a luta armada. Inclusive à época, quando houve uma eleição, houve uma grande campanha para o voto nulo, porque ninguém acreditava na saída institucional. À época, também, a grande questão colocada no XXX Congresso da UNE em Ibiúna, em 1968, foi a discussão que se travava entre se fazer atividade de massa e aberta, ou se fazer uma atividade fechada, com estrutura militar para garantir o congresso mediante todo um aparato de estratégia de segurança militar. A posição que eu tinha era que o Congresso deveria ser realizado no alojamento da Universidade de São Paulo (o CRUSP), com massa, com representação. E se a repressão o reprimisse deveria fazer uma mobilização de massa.
            Os jovens com quem convivíamos eram pessoas que liam bastante e formavam de fato uma intelectualidade. Isso ocorria com grupo de trabalho para discutir temas diversos. Agregava tanto o pessoal mais ligado à Igreja, como o pessoal mais ligado ao marxismo. Mesmo as pessoas da Igreja usavam o marxismo como um instrumento para entender os mecanismos da sociedade, contrapondo-se a sociedade capitalista. E daí uma confusão muito grande era feita entre o socialismo cristão e o socialismo marxista-leninista.
            Outra grande discussão era em relação ao caráter da revolução, ou seja, se seria uma revolução socialista, ou uma revolução popular e democrática. E no caso da primeira, se essa sairia do campo para a cidade ou da cidade para o campo. E na época dizíamos que sairia do campo, porque a grande maioria das pessoas naquele período estavam no campo.
            A grande herança deixada por minha geração é uma preocupação com a ética, o idealismo, o desprendimento, a questão do sacrifício com a sociedade e o despojamento de alguns valores burgueses. Eu me lembro que éramos muito censurados por causa dos nossos comportamentos. Isso também foi um dos motivos que me empolguei, pois ao invés de buscar ser um advogado bem sucedido financeiramente, preferi ser militante dos direitos humanos, mesmo com todas as dificuldades que a questão dos direitos humanos oferece. Depois que fui eleito vereador, isso me garantiu uma certa condição de sobrevivência sem a ocorrências de grandes abalos.
            A luta pelos direitos humanos me traz uma satisfação pessoal que os grandes escritórios de advocacia não me proporciona, pois como um dos membros da geração 68, que foi um marco na resistência contra a ditadura, a luta contra a opressão e a defesa da liberdade estava acima de qualquer interesse particular. Foi uma questão construída ao longo do tempo, o que nesse caminho passamos a valorizar uma questão muito importante, que é o significado da luta.
            A abertura dos arquivos da ditadura militar é uma questão fundamental, pois é o direito à memória, ao resgate histórico e não somente no sentido de que todos possam conhecer a história do seu País e das pessoas que deram a sua contribuição, mas também de tentar esclarecer como as pessoas desapareceram ou foram mortas nos órgãos da ditadura. Sabemos que muitos desses arquivos foram destruídos por serem comprometedores para as Forças Armadas. Mas nesse aspecto, penso que é uma luta que precisa ser assumida por todos, e não só pelo governo, porque precisa ter uma pressão da sociedade em relação ao governo para forçar de fato a abertura de arquivos secretos. É uma questão que precisa ser colocada no âmbito dos direitos humanos, ou seja, o acesso à memória para não mais ocorrer nunca mais. Mas essa é uma luta negociada.
            Hoje temos setores da juventude mais avançados que estão preocupados com a democracia. E é bom que esse grupo se preocupe com a questão dos direitos humanos e com a questão da cidadania, mas não fiquem só olhando no retrovisor o que fez as gerações passadas. Seria importante essa geração começar a se preocupar com o que poderá fazer para as gerações futuras. E que amanhã outras gerações possam verificar o que a atual geração está fazendo. Como desafio para essa geração eu deixaria a questão do engajamento pelos direitos humanos, pela cidadania e a defesa de uma sociedade mais ética, mais justa e mais fraterna. Em suma, a construção de uma sociedade com oportunidades para todos.


[1] Depoimento concedido ao Pesquisador Otávio Luiz Machado.


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