Não é mero acaso que o debate entre os dois grupos de jovens modernistas sobre uma obra intrincada como Ulysses tenha terminado em uma imersão no universo da cultura popular carioca. Nas páginas de Estética, as inovações formais do panorama de vanguardas internacionais trazidas à tona pelo modernismo são recontextualizadas e passam a servir de combustível para um problema central: o da formação da cultura nacional. Nessa perspectiva, enquanto a revista Klaxon se apresenta como resultante direta da Semana de Arte Moderna de 1922 e, por isso, cercada da atitude irreverente e contestadora da vanguarda (vide apresentação de Jorge Schwartz à Klaxon), Estética, sua sucessora, apresenta-se como uma revista de construção e afirmação de caminhos. São justamente as posições decorrentes desse debate que correspondem aos diferentes rumos que tomaram os grupos de intelectuais modernistas após o evento aglutinador da Semana.
Uma das características mais significativas de Estética é o investimento na crítica literária, que passa a ocupar um grande espaço no conjunto. Os três números de Estética dedicam seções específicas aos comentários de obras de “Literatura brasileira”, “Literatura francesa” e “Literaturas anglo-saxonias”, e boa parte deste material foi assinado pelos próprios diretores a duas ou quatro mãos. Dentre esses trabalhos, merece destaque a crítica contundente à obra Estudos brasileiros, de Ronald de Carvalho, no número 2, que gerou o que talvez tenha sido o primeiro grande racha do modernismo com o grupo de Graça Aranha, Renato e Guilherme de Almeida e do próprio Ronald de Carvalho. Para os diretores da revista, a questão da nacionalidade deveria sofrer uma “revisão urgente” pautada pela adoção de um “espírito critico”, “novo, ousado, irreverente, sem a menor preocupação com o que escreveram Rocha Pombo ou Silvio Romero”. Em outras palavras, a crítica estava direcionada à atitude que entendia a nacionalidade como uma essência e se propunha uma nova construção da cultura nacional. Mesmo esse impulso construtivo deveria ser ponderado; o “falar brasileiro” praticado por João Miramar em suas Memórias sentimentais (de Oswald de Andrade) é criticado em texto também assinado pelos diretores de Estética (n.2) por sua artificialidade. O artigo “Perspectivas”, publicado por Sérgio Buarque de Holanda no número 3, já deixa transparecer um mal-estar com os rumos do movimento, expresso de modo claro pouco tempo depois em “O lado oposto e outros lados” (Revista do Brasil, 1926). Nele, Sérgio lança os germens fundamentais de sua concepção da formação da cultura nacional, posição que será motor de Raízes do Brasil, publicado uma década depois. Sua crítica é direcionada ao afã modernista de construção de uma “arte de expressão nacional”; para ele, qualquer tentativa de racionalização estava fadada ao fracasso. Era necessário manter os canais de contato com a cultura, “com a terra e com o povo”, sem esquemas prévios, dando-lhes voz própria – “penso naturalmente que poderemos ter em pouco tempo, que teremos com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais que evidente, de nossa vontade, nascerá muito mais provavelmente de nossa indiferença”, como afirmou em “Lado oposto...”.
Outro campo em que Estética se destaca é na poesia. “Danças” (n.1) e “Noturno de Belo Horizonte” (n.3) podem certamente ser incluídos na lista dos poemas mais importantes de Mário de Andrade, e aparecem em versões anteriores às publicadas em livro. Se for possível arriscar uma visão global da poesia em Estética, e acompanhando tanto os trabalhos de Monica Pimenta Velloso quanto de Maria Célia Leonel, diria que predominam as cenas urbanas típicas da modernidade e o contraste com formas tradicionais, provocando um estranhamento, uma sensação de contraste tão bem condensado no magistral “Cacto”, de Manuel Bandeira (n.3). As cenas urbanas tendem a ser captadas por um procedimento análogo ao fotográfico – instantâneo e imediato – o que denuncia a presença marcante da poesia de Blaise Cendrais e seu Kodak – Documentaire (resenhado por Sérgio Buarque no n.1). O registro imediato da realidade urbana esposa uma preocupação com a depuração das formas poéticas de modo que o cotidiano banal assume formas sublimes, trágicas ou épicas. Essa tensão é presente não apenas na poesia de Bandeira, mas aparece também no n.3 na pena do jovem Carlos Drummond de Andrade, que, por intermédio de Mário de Andrade, foi apresentado ao público da capital. Além da prática do que pode ser chamado de “objetivismo lírico”, não podemos ignorar o influxo do primitivismo e do surrealismo, cujo manifesto havia acabado de ser publicado, em 1924. De forma difusa, Sérgio e Prudente defendem o primado do sonho e do inconsciente, da imaginação como força criadora em detrimento do primado da palavra e da lógica. Além do já mencionado “Perspectivas”, o texto mais sintomático da manifestação dessas tendências é o conto “O rato, o guarda-civil e o transatlântico”, de Aníbal Machado (n.2).
Embora Mário de Andrade não tenha sempre recebido de forma pacífica as posições polêmicas dos jovens escritores, sua marca pessoal impregna o terceiro número da revista, efeito natural do afastamento com o grupo de Graça Aranha. A audácia e abertura demonstradas na incorporação de tendências das vanguardas não devem obliterar o verdadeiro sentido de missão deixado pelo último número de Estética, sentido reforçado pelas palavras de ordem da “Carta Aberta a Alberto de Oliveira”: conhecer o Brasil, dotando a cultura nacional de autonomia em relação ao que vinha da Europa. Se por um lado as discussões em torno de Estética testemunham a divisão do modernismo em facções ou “lados”, por outro incorporam sentido duradouro de missão que deu o tom da intelectualidade brasileira no século XX.
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