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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

OPINIÃO: As ilusões necessárias (Por Isleide Fontenelle)

FONTE: http://boitempoeditorial.wordpress.com/2011/11/07/as-ilusoes-necessarias/

"Lavender Mist (number 1)", de Jackson Pollock
Por Isleide Fontenelle.
Em O nome da marca: McDonald´s, fetichismo e cultura descartável (Boitempo, 2002), livro que foi originalmente minha tese de doutorado em Sociologia, concluída em 2000, afirmei que o consumo de marcas publicitárias se dava na medida em que essas se apresentavam como uma ilusão de forma em uma sociedade que estava perdendo rapidamente a sua forma. Com isso queria dizer que vivíamos em um momento histórico diante do qual já não parecia mais haver um sentido de permanência do mundo social. A realidade parecia começar a se desrealizar. E com isso começava a haver uma crise das identidades que foram constituídas ao longo da Modernidade.
Poder-se-ia objetar que essa estabilidade identitária já era uma ilusão. A própria invenção da Psicanálise, há mais de um século, fundou-se a partir dessa assertiva de que um sujeito autônomo e, ao mesmo tempo, coeso, era mero produto de uma construção social. Mas também sabemos que tal fantasia social perdurou por muito tempo e fez funcionar toda uma realidade, até começar a ser posta em causa. O que é interessante perceber é que foi o próprio discurso publicitário que começou a expor essa ilusão a partir de um tipo de comunicação publicitária que passou a privilegiar imagens e discursos focados nas inconsistências do sujeito, insistindo que não havia mais papéis sociais fixos, identidades determinadas. Que não havia, enfim, mais garantias.
Esse novo modo de agir publicitário, cada vez mais intenso nas últimas décadas do século XX, levou a muitas análises e reflexões no campo da crítica social. O que, afinal, estava acontecendo com aquele que tinha sido um dos campos, por excelência, das nossas ilusões? Seria isso o indicativo de que estaríamos vivendo o fim das ideologias, como afirmou o filósofo francês Gilles Lipovetsky em seu livro A Era do Vazio (Relógio d’ Água, 1989), justamente ao mencionar a ascensão de um tipo de publicidade nonsense que já se presenciava na sociedade francesa?
O campo da publicidade sempre foi fértil para a exposição de alguns sintomas sociais de nossa época, embora de forma ressignificada, ou seja, sempre a partir de uma perspectiva que pudesse resultar na venda de produtos e serviços. Assim, em uma sociedade em constante aceleração, cada vez mais movida pela necessidade do novo (conforme falei na minha última coluna), era preciso cultuar a novidade, insistir na inconsistência do mundo como valor positivo; ao mesmo tempo em que, diante desse desmoronamento, começou-se a se apresentar a marca como ilusão de forma. Tratava-se de uma ilusão não só porque a marca jogava com essa impossibilidade de que qualquer símbolo pudesse oferecer o lugar das identidades sociais permanentes, mas porque a própria marca estava submetida ao processo de reestruturação constante de suas imagens e produtos, a fim de ela mesma permanecer no mercado.
Isso não significou o fim das ideologias, mas confirmou as análises de Theodor Adorno e Max Horkheimer de que teria havido uma transformação no conceito de ideologia. Em outras palavras, não se poderia mais falar em ideologia como “falsa consciência”, daí porque, no caso do consumo de imagens publicitárias, foi possível afirmar que os sujeitos que consumiam essas marcas sabiam que essas imagens eram ilusórias, mas agiam como se não soubessem.
Foi de posse dessas análises que eu desconfiei se seria possível aos movimentos contestatórios surgidos na década de 1990 (chamados movimentos antiglobalização, mas, na verdade, movimentos anticorporações) desfazerem tão facilmente, no nível da pura consciência, essa ideologia como realidade de si mesma, como afirmou taxativamente a jornalista canadense Naomi Klein em seu livro Sem Logo (Record, 2002): “quanto mais pessoas descobrirem os segredos das grifes da teia logo mundial, a revolta estimulará o próximo grande movimento político, uma grande onda de oposição dirigida contra corporações transnacionais, particularmente aquelas com marcas muito conhecidas”, dizia ela.
Uma década depois, o que se vê é como as reivindicações desses movimentos foram assimiladas sob a forma de um novo tipo de imagem e de discurso das marcas a partir da produção do marketing da cidadania e do “consumo responsável”. Comércio justo, inclusão social, respeito ao meio-ambiente, ou seja, muitas das críticas e reivindicações que eram dirigidas a essas corporações por esses movimentos, passaram a ser ressignificadas pelas marcas na produção de novas imagens para consumo. E muitas das marcas alvejadas pelos movimentos se mantêm, hoje, ainda mais poderosas.
Por outro lado, também vejo essas novas construções discursivas como tentativas das corporações reconstruírem o elo perdido do consumo com alguns valores sociais que sustentaram a formação da cultura de consumo em seus primórdios: construção da nação, ideia de progresso, democracia, igualdade, busca da felicidade, ou seja, os sonhos mais caros da Modernidade. Tais valores assumem novas roupagens como o discurso do respeito ao local, do empreendedorismo, do multiculturalismo, entre outros valores sociais contemporâneos, e agora, sob a imagem e semelhança das marcas que os veiculam.
Acredita-se nesses discursos? Não creio. Mas o fato é que, diante dessa realidade inconsistente e vazia de significados, as marcas continuam nos oferecendo “ilusões de forma”. Diante da possibilidade da face monstruosa do vazio, que o próprio universo do consumo nos fez encarar, fica a angústia do que colocar no lugar. O que temos hoje, na fase atual do capitalismo, como nos diz Agamben – em O que é o contemporâneo? (Argos, 2009) – são dispositivos que “não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação… processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral”.
Esses sujeitos espectrais – escorregadios e oscilantes – parecem apontar desafios novos para as marcas. Por isso as próprias marcas também se vêem, hoje, diante do risco permanente de se dissolverem nessa irrealidade, tendo que se reinventar constantemente para dar conta da inconstância que ajudaram a produzir. De outro modo, esses sujeitos espectrais também podem desafiar o poder que sustenta essa forma de capitalismo de consumo. É por isso, diz Agamben, que esses “inócuos cidadãos das democracias pós-industriais” são considerados pelo atual poder como “terroristas virtuais”, dado que sempre apresentam elementos fugidios, inapreensíveis.
Seriam esses sujeitos espectrais os atores dos atuais movimentos de contestação, que não têm uma forma definida – ganham diferentes contornos em diferentes lugares do mundo – nem uma agenda clara de propostas? Seriam eles capazes de provocar rachaduras nessa matriz especular do capitalismo de consumo? Trata-se, mais uma vez, de uma aposta. Mas, de novo, não acredito que uma sociedade abra mão tão facilmente de suas ilusões necessárias. É até possível que estejamos presenciando o princípio do esgotamento de certo imaginário social em torno de uma sociedade de consumo que não cumpriu o que prometeu, cujos sinais se deixam entrever em tais movimentos. Mas o que resultará disso depende de “se” e “como” uma nova organização social da fantasia será capaz de se contrapor às ilusões que a cultura de consumo nos legou.
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Isleide Fontenelle é formada em Psicologia, com Doutorado em Sociologia pela USP. Professora adjunta da Fundação Getúlio Vargas-SP, em cursos de graduação e pós-graduação, integrante do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração. É autor de O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (Boitempo Editorial, 2002) e diversos artigos e ensaios. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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