Por Tâmara de Oliveira
Em 12 de setembro último, o Cazzo contribuiu para tornar pública uma polêmica envolvendo professores, estudantes e egressos do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mas que merece a atenção de qualquer cientista social do país: aquela envolvendo o projeto MEC/CAPES de curso de "Especialização em Ensino de Sociologia no Ensino Médio - modalidade à distância." O centro de educação à distância da UFS, CESAD, aderiu ao projeto e o professor que elaborou a proposta local, membro do DCS, decidiu que o Departamento de Ciências Sociais deveria ser a primeira instância a se pronunciar sobre a mesma. Daí sua tramitação no DCS/UFS, posto que, em geral, os projetos do CESAD gozam de autonomia em relação aos departamentos de nossa universidade que, dessa forma, limitam-se a aprovar ou não a participação eventual de seus professores.
Acho que nosso colega tomou uma excelente decisão, atravessada pelo que Habermas (2003) reflete através de sua ética da discussão. Com efeito, ao invés de se proteger sob as asas de papéis institucionais que, no caso, tornavam prescindível a necessidade da aprovação departamental do projeto, ele escolheu submeter seu trabalho à discussão pelo Conselho Departamental, permitindo que a polêmica aparecesse e que os cientistas sociais da UFS se ocupassem com um assunto que, regra geral, só interessa àqueles que se envolvem mais diretamente com as licenciaturas e/ou com o ensino médio da sociologia no país.
O núcleo dessa polêmica envolveu duas variáveis importantes do ensino da sociologia no ensino médio, mas que na prática podem se chocar: o aperfeiçoamento de jovens graduados para uma melhor inserção profissional, diante da demanda crescente do ensino da sociologia e num contexto de funcionamento precário da legislação federal sobre o exercício da profissão de sociólogo; a formação continuada de professores já atuando precariamente nesse ensino. No primeiro polo da polêmica, a preocupação era que esse projeto, como formulado, legitimasse a resistência do governo estadual à abertura de vagas para sociólogos e à mudança da legislação estadual sobre o exercício do ensino médio da sociologia, ao especializar, numa só “fornada”, 150 professores para preencher carga horária, enquanto seus próprios graduados não tem oportunidade de aperfeiçoamento. No segundo polo, a preocupação referia-se a uma reivindicação antiga de profissionais envolvidos com as licenciaturas e com o ensino médio da sociologia no Brasil, qual seja a de se agir contra a fragilidade dos conteúdos ministrados – muitas vezes oscilando entre lamentáveis conteúdos da não saudosa Educação Moral e Cívica e questionáveis conteúdos de militantismo político –, através da formação continuada de professores já atuando nesse ensino.
Estávamos assim, entre os convictos de que o projeto representava um “duro golpe nos alunos licenciados” e os convencidos de que ele apenas poderia “atenuar a necessidade de formação continuada de professores já atuando”, quando houve a primeira reunião do Conselho Departamental sobre a proposta local de adesão ao projeto MEC/CAPES. Reunião histórica, cuja condução teria animado Habermas e sua teoria da ação comunicativa (1999) e, à qual já me referi aqui no Cazzo. Aquela mesma que precisou acontecer no auditório de Psicologia e Ciências Sociais, porque muita gente quis estar de corpo presente na discussão.
E foi durante essa reunião que eu fui tendo a impressão de que havia no ar algo mais grave do que a polarização entre duas posições, e que, possivelmente, estava na raiz dela própria: boa parte dos conselheiros, assim como do público da reunião, não conhecia suficientemente (ou não conhecia de jeito nenhum) o projeto em discussão. Inclusive esta que vos escreve! Fui trocando olhares com meus colegas e percebendo que muitos deles estavam como eu: mezzo perdidos/mezzo perplexos e bastante preocupados. Matutando sobre isso enquanto a discussão continuava, considerei que aprovar, reprovar ou reformular fosse lá o que fosse numa situação de tamanho desconhecimento do que estava em questão, seria uma tremenda irresponsabilidade acadêmica coletiva. Foi assim que pedi vista do processo e o justifiquei – que foi acatado pela Presidente do Conselho e recebido com alívio por aqueles que, como eu, estavam convencidos de que ainda era cedo e o clima estava muito quente para uma decisão.
Apresento a seguir as principais considerações de minha análise do projeto, da discussão e da decisão departamental, considerando que o Cazzo, por ter contribuído para tornar pública nossa polêmica, é um espaço mais do que legítimo para tornar pública sua resolução.
Enquanto lia o projeto MEC/CAPES e a proposta de adesão local UFS/CESAD, eu ia pensando: é verdade..., programas e projetos referentes a políticas públicas nos chegam cada vez mais acabados, verticalizando a interação instâncias governamentais/universidades. Surgem uns “pacotes prontos” e corremos o risco de virar meros executores de políticas das quais desconhecemos as motivações concretas e, sobretudo, as tensões entre os parceiros que as formulam e/ou sustentam. Conhecemos apenas os princípios genéricos e ideais que os animam, como por exemplo: elevar o nível do ensino médio da sociologia no país, fomentar uma educação escolar para a ética, a cidadania e a diversidade; combater a violência urbana; etc., etc. Podemos nos submeter voluntariamente ao que mal conhecemos ou desconhecemos completamente, mesmo se com as melhores intenções do mundo. Desde que eles citem democracia, direitos, diversidade, desnaturalização e tolerância, podem enfeitiçar nossa reflexividade e nos conformar bovinamente às políticas públicas. Logo nós, que, por ofício, e inspirando-me aqui no que Cynthia Hamlin (2011) comenta sobre o Realismo Crítico de Margaret Archer, deveríamos cultivar a metarreflexividade, ou seja, aquele tipo de reflexividade que desafia a comodificação e a burocratização das relações humanas.
Com efeito, embora o professor que elaborou o programa tenha convidado todos os professores da área de sociologia do departamento à participação no curso, mesmo aqueles que aceitaram e tem seu nome no projeto demonstraram, durante a polêmica, não o terem lido com suficiente atenção – ou não o terem lido de forma alguma. Não fomos suficientemente responsáveis. Como se funcionássemos por piloto automático, supomos que um projeto específico de formação continuada de professores de sociologia do ensino básico é, a priori, bom e não perdemos tempo para conhecer sua formulação e perspectivas concretas.
Todavia, inspirando-me agora no construtivismo à moda de P. Berger e Thomas Luckmann (1990), a fonte central de mudança da realidade social (tanto a objetiva quanto a subjetiva) está nos problemas, ou seja, em experiências problemáticas que põem em cheque nossas formas tipificadas/institucionalizadas de pensar, sentir e agir. Viva então aquela polêmica para cuja publicidade o Cazzo contribuiu! Tremo só em pensar que, se não fosse por ela, poderíamos ter aprovado o projeto MEC/CAPES assim, sem mais nem menos, como bons soldados acadêmicos sem tempo para pensar. Ou tê-lo reprovado sob um tipo de convicção que nunca é boa conselheira: aquela que não vem de uma argumentação fundamentada no conhecimento reflexivo do assunto em discussão, mas em informações vagas e/ou leituras apressadas. A polêmica e nossa primeira reunião nos deram tempo para conhecer o projeto, pensá-lo e assim podermos resgatar nossa responsabilidade acadêmica.
Em primeiro lugar, formulando perguntas legítimas: qual a pertinência do processo de seleção dos projetos locais, já que o da UFS/CESAD foi aprovado sem conter um diagnóstico efetivo que pudesse prognosticar seu impacto no terreno local e justificar sua execução em Sergipe? Não seria mais útil equilibrar as vagas entre regiões do interior e da Grande Aracaju (onde o número de turmas do ensino médio da sociologia é muito maior), mesmo que isso significasse alterar um ou dois dos polos de educação à distância visados? Não teria sido mais estratégico, para a CAPES, grande financiadora do aperfeiçoamento de cientistas sociais do país, num contexto em que a regulamentação da profissão de sociólogo é na prática precária, que especializações voltadas para graduados em ciências sociais fossem, se não priorizadas, pelo menos melhor contempladas pelo projeto? Ainda pensando no funcionamento precário do exercício da profissão de sociólogo, fato problemático para a viabilidade das licenciaturas em ciências sociais do país, por que o projeto pedagógico MEC/CAPES define seu público-alvo como, cito, « professores graduados que estão atuando nos sistemas públicos de ensino e ministram aulas nos Ensinos Fundamental e Médio »? Ora, com definição de tamanha amplitude, abre-se sim a possibilidade de que projetos locais de adesão contribuam ativamente para a ocupação de parte da demanda de professores de sociologia por professores de qualquer área de conhecimento que, não lecionando essa matéria, percebam que esse curso é uma oportunidade de ouro para completar sua carga horária.
Dir-se-ia que nada disso tem importância. Apenas que projetos fechados consigam aderentes, que vagas sejam ofertadas (sem nenhuma justificativa sobre sua quantidade) e verbas sejam utilizadas, em projetos rápidos e recheados de princípios ideais das entidades parceiras. Afinal de contas, a democratização do ensino superior que, no Brasil, exprime-se também pela expansão universitária, constrói-se apenas para fornecer a ilusão de inserção social, via ensino superior de jovens – como disse pertinentemente o sociólogo Stéphane Beaud (2003) sobre a democratização escolar francesa – ou para possibilitar efetivamente que eles adquiram uma profissão socioeconomicamente viável?
As perguntas acima tornavam compreensível a petição pública elaborada por estudantes e egressos para que o DCS reprovasse o projeto como estava formulado, remetendo à possibilidade de que ele dissimule uma intenção de remedeio do ensino médio de sociologia através da formação para inserção de professores de qualquer área de conhecimento no ensino da matéria, evitando assim que a demanda crescente por turmas de sociologia obrigue a abertura de vagas para graduados em ciências sociais. Ou, mesmo que não evite, oferecendo margem de manobra a governos estaduais, em sua economia política de vagas. Para analisar a pertinência dessa argumentação, tivemos que ponderar sobre a dimensão legal que envolve o ensino médio da sociologia, articulando-a a formulação do público-alvo pelo projeto de adesão local (projeto UFS/CESAD).
Neste sentido, levamos em conta o fato de que um curso de especialização lato senso não significa diploma de habilitação, mas certificado de formação aperfeiçoada em uma área de conhecimento. Ou seja, um profissional não graduado na área, apenas especializado, não será um concorrente de graduados em ciências sociais, no que diz respeito a vagas que se abram para cientistas sociais no ensino médio público. Além disso, fato manifestando que a proposta local equilibrou melhor as duas variáveis aqui já colocadas do que a do MEC/CAPES, o projeto UFS/CESAD recortou mais seu público-alvo, definindo-o como, cito, « professores graduados que estão atuando nos sistemas públicos de ensino e ministram aulas de Sociologia no Ensino Médio ». Lembramos também que o público-alvo do projeto local, professores já atuando no ensino médio da sociologia das redes públicas, não deixará mais de atuar nesse ensino – com ou sem especialização.
Sendo assim, a proposta UFS/CESAD de fornecer formação em sociologia e ciências sociais para esses professores, atendendo reivindicação antiga de profissionais envolvidos com as licenciaturas e com o ensino médio da sociologia, é mais do que legítima. Não se pode supor que 150 vagas para uma especialização à distância de professores já ensinando sociologia, possam ameaçar a abertura de vagas para habilitados na rede pública de educação. Melhor dizendo, este curso poderia apenas fornecer, ao menos idealmente, melhor conhecimento da disciplina àqueles que já a ensinam e vão continuar ensinando-a, em regiões do estado que são potencialmente recusadas por graduados em ciências sociais – como aconteceu com alguns aprovados do concurso de 2003.
Diante disso, o que continuava válido no saber pano-de-fundo (Habermas, 1999) da reivindicação de estudantes e egressos, era a constatação de que a formação de nossos licenciados na graduação ainda sofre de uma estrutura curricular pensada predominantemente para o nosso bacharelado. Sendo assim, considerar que incluir nossos egressos no público-alvo do projeto UFS/CESAD faz parte das necessidades básicas para o ensino da sociologia no ensino médio em Sergipe, é absolutamente legítimo. Justificar que as instituições formadoras e os sistemas de ensino locais tem a necessidade de reformular seu próprio público-alvo seria uma argumentação válida para propor sua alteração.
Mas a análise do projeto revelou outro problema, estrangeiro à polêmica que o envolvia até então e referente ao próprio objetivo central do MEC e da CAPES, qual seja o de fornecer formação continuada a professores já atuando no ensino médio, para melhorar a qualidade dos conteúdos e da orientação metodológico-pedagógica. Um primeiro estranhamento: por que a bibliografia do curso também está pré-determinada (embora se preveja verba para complementação bibliográfica), já que a elaboração do material didático de outros cursos do CESAD foi atribuição dos professores responsáveis pelas disciplinas? Em outros termos, porque retirar a esse ponto a autonomia de professores universitários em relação aos conteúdos que eles ensinam, justamente num curso de especialização à distância? Além disso, uma análise preliminar dos programas e bibliografias das disciplinas revelou que, se em geral os módulos são bem elaborados, as disciplinas teóricas tem conteúdos adequados e as disciplinas pedagógicas são configuradas de modo a fomentar, pelo menos potencialmente, um ensino dinâmico e dialógico, nem todas as disciplinas parecem ter recebido o mesmo cuidado na elaboração da ementa, do programa e da bibliografia. Apresentando alguns desses problemas:
a) Participação política e cidadania: além de uma profusão dificilmente administrável de temas entre a descrição geral, a ementa, os conteúdos e os objetivos, pode-se perceber uma possível identificação entre sociologia política e formação política – o que pode significar contaminação por uma das tendências preocupantes no ensino médio da sociologia no Brasil, qual seja a de sua identificação com militantismo político – estudantil, de minorias ou categorias organizadas, etc., tornando o ensino da sociologia potencialmente refém de vieses ideológicos, esses inibidores nem um pouco naturais da reflexividade – seja dos que ensinam a sociologia, seja dos que a aprendem. Ora, tendo em vista que o projeto MEC/CAPES tem como princípios norteadores do curso as noções de desnaturalização e estranhamento, princípios estes que fundamentam o olhar sociológico sobre as realidades sociais, essa possível identificação entre sociologia política e formação política os fere irremediavelmente.
b) Estrutura e mudanças sociais: enquanto a descrição, a ementa, os objetivos e os conteúdos parecem perfeitamente adequados às ambições do curso, a bibliografia parece longe de ser capaz de contemplá-los.
c) Espaço escolar: renovações teóricas importantes e fundamentais para as ambições do curso, principalmente porque são resultantes de pesquisas empíricas e comparadas, como aquelas resultantes de análises de formas contemporâneas de desigualdade e segregação sociais produzidas pela escola, demandariam uma complementação bibliográfica.
Depois de uma longa, serena e ética discussão sobre esses aspectos problemáticos e problematizados do projeto, em reunião aos 05.10.2011 (também histórica, também no auditório, diga-se de passagem), o DCS/UFS chegou a uma decisão (quinze votos a favor, nenhum contra e uma abstenção) que sintetizo a seguir:
Considerando que o projeto de curso proposto não elaborou o necessário diagnóstico das carências efetivas do sistema público de ensino médio de sociologia em Sergipe; considerando que o projeto do curso não ponderou suficientemente sobre o necessário equilíbrio local entre, por um lado, formação continuada de professores da rede pública já atuando no ensino médio de sociologia e, por outro lado, o aperfeiçoamento de nossos graduados em ciências sociais para que eles possam atender com melhor qualidade à demanda crescente do ensino médio de sociologia em Sergipe; considerando que os dois aspectos acima colocados implicam na necessidade potencial de reequilibrar o público-alvo do curso proposto; considerando que o projeto do curso não analisou os programas e bibliografias das matérias do curso, para construir necessárias complementações bibliográficas e ajustes metodológico-pedagógicos consonantes com os princípios norteadores do projeto MEC/CAPES, a saber, desnaturalização e estranhamento sociológicos; considerando que, caso reformulado, o curso proposto pode contribuir para a formação permanente dos profissionais da área de sociologia, o Conselho Departamental decide por uma aprovação condicional do projeto UFS/CESAD, ou seja, sob a condição de que seja reformulado segundo as considerações acima, por uma comissão designada pelo Conselho Departamental de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe. Designamos os membros da comissão na mesma reunião e estamos cuidando de reformulá-lo até a última reunião do ano do DCS, quando ele será novamente discutido para deliberação – reflexiva e responsavelmente, como devem agir os acadêmicos.
Bibliografia
BEAUD, S. 80% au bac...et après? Les enfants de la démocratie scolaire. Paris: La Découverte, 2003.
BERGER, P. / LUCKMANN, T. La construction sociale de la réalité. Paris: Masson/Armand Colin, 1996.
HABERMAS, J. Droit et démocratie. Paris: Gallimard, 1999.
HABERMAS, H. L’éthique de la discussion et la question de la vérité. Paris: Grasset, 2003.
HAMLIN, C. Apresentação da Conferência de Margaret Ascher no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Que Cazzo é esse. Recife, jul. 2011. Disponível em: http://quecazzo.blogspot.com/2011_07_01archive.html
HABERMAS, H. L’éthique de la discussion et la question de la vérité. Paris: Grasset, 2003.
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