Um professor chama uma aluna para receber orientação em sua sala. A aluna fala sobre as pesquisas e, em dado momento, o professor segura fortemente as mãos dela e pede para que relaxe. A menina acha estranho e fica nervosa com a atitude do professor. Tenta soltar as mãos. Solta. Neste momento, o professor tenta beijá-la.
Ela recusa e ele tenta novamente o contato físico. Apalpa os seios e as nádegas da aluna. Ela o empurra: “Me Respeite! Sou uma mulher casada!” e escuta: “Isso não é problema!” Atordoada, junta pasta, bolsa, computador e se dirige à porta da sala. “Vamos almoçar?”, diz ele. “Não!”, retruca ela; e caminha pelo corredor em direção ao elevador do prédio. O professor a segue. Ela resolve usar as escadas e ele vai atrás. No meio do percurso, apalpa as nádegas dela novamente. “Não faça isso! Desça na minha frente!” “Só se você pegar na minha também.” Ela continua descendo e consegue chegar ao térreo do prédio. Encontra um funcionário conhecido. Assustada, fala com o funcionário como se procurasse ajuda mas ele não percebe. Ela sai do prédio e o Professor toma outro rumo.
Esta cena, ocorrida no 14º andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, no intervalo do almoço, pode parecer familiar a muitas mulheres/alunas que já foram assediadas. Tanto que os fatos narrados foram diretamente classificados pelas Delegadas da Mulher, que recolheram o primeiro depoimento da vítima, como Crime de Estupro. Sim, estupro. Pois de acordo com a nova legislação, estuprar não é somente o ato sexual consumado. É também o constrangimento ou ameaça de praticar ato libidinoso. Em outras palavras: para a nova legislação, de 2009, não é preciso que o agressor use de violência física grave ou ameaça com arma para que seja caracterizado um estupro. Apalpar os seios e nádegas caracteriza o crime.
Apesar da acusação, que aos ouvidos parece tão grave, o acusado, Professor Jorge Zaverucha, do departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal de Pernambuco, preferiu se calar. Diz que só responderá ao caso em Juízo.
O indiciado escolheu o silêncio. A agredida e nós, mulheres, não.
A saga de quem sofre a agressão
A pressão para não denunciar foi grande. Em especial porque se trata de um professor renomado, com diversas pesquisas na área de segurança pública importantes na Universidade e no Governo do Estado. Uma pessoa de família tradicional e abastada. Por este motivo, alguns funcionários da universidade que “acolheram” a vítima sugeriram que ela guardasse toda a mágoa e trauma pra si. Que pensasse bem pois se tratava de uma pessoa influente.
Mas a aluna prosseguiu com a denúncia. E graças à coragem em não seguir este conselho “amigo”, uma outra mulher, que viveu situação parecida em 2006, resolveu relatar agressão do mesmo professor. Logo adquiriu força quando percebeu que não estava só.
A denúncia não é/foi fácil, pois nossa cultura machista inverte as coisas, e todos questionam a agredida, em lugar do agressor. “Por que ela foi na sala do professor?” “Será que ela não deu brecha mesmo?” “Isso é pra ganhar indenização…” Como se cada ato da mulher fosse um convite implícito para uma passada de mão. Como se precisássemos ser robôs andróginos para não incitar a libido masculina.
Ir à sala de um professor é perfeitamente normal para qualquer orientanda. Anormal é o professor usar a autoridade simbólica para constranger alguém que pode perder muito: o mestrado, o respeito dos colegas preconceituosos, o casamento.
Como se não bastasse, o reacionarismo pondera mais ainda o lado do opressor. Diminuem a gravidade do acontecido pois o professor “não colocou nenhuma arma na cabeça da moça.”
Como se fosse preciso.
Infelizmente, mulheres são condicionadas culturalmente à subordinação. A figura masculina ainda intimida muitas de nós. Estar no mundo do trabalho, ter dinheiro, poder sair de casa e escolher o parceiro não significa liberação. Esta foi em parte uma necessidade sistêmica, a liberação real é uma conquista diária a partir da luta. O que acontece para quase todas nós é ficarmos imóveis em situações deste tipo. Tenha o agressor uma arma ou não. Muito fácil falar que reagiria. A maior parte não o faz e fica calada depois. O medo é insuportável e ameaçador.
Armadilhas da lei e da jurisprudência
Desde o dia 26 de maio, data do ocorrido, o caso se arrasta tanto criminalmente (ele foi indiciado por Estupro e Crime Continuado pelo código penal), quanto administrativamente. Trata-se de um funcionário público federal, professor universitário, e uma simples aluna. E o cenário foram as dependências da Universidade Federal de Pernambuco. Ou seja: tanto o poder judiciário quanto a Universidade irão investigar e, a depender das provas, punir.
Assim, há meses a investigação corre em dois níveis: judicial (Delegacia, Ministério Público e Juizado) e institucional (Universidade).
A universidade está apurando o caso. Recolhendo depoimentos das testemunhas da vítima e ainda ouvirá as da acusação. Somente depois disso é que pode ser instaurado processo administrativo. Neste estágio, a comissão de apuração sugere como punir o acusado. Cabe ao Reitor da Universidade acatar ou não a sugestão.
Ressaltamos que, caso Zaverucha seja declarado culpado, teremos mais uma comprovação clara dos abusos cometidos por professores dentro das Universidades. Não é o primeiro indício contra este agressor específico e, mais que isso, não é o primeiro caso do tipo que acontece na UFPE. Professores são figuras biônicas na academia como um todo e possuem pequenas e grandes vantagens, que vão desde um elevador especial até a hierarquia simbólica que abre espaço para a prática de assédio moral e sexual nas instituições do ensino federal. Se a culpa for declarada, este caso é um precedente importante para evitarmos que futuras ocorrências fiquem no boato. Denúncias deste tipo devem ser tratadas publicamente, e não serem abafadas em nome da imagem institucional. Assédio não é problema privado. O machismo e opressão de gênero são problemas públicos, das mulheres e do povo, e assim devem ser tratados. Uma investigação a portas fechadas não nos contempla.
Nos compete acompanhar o resultado da apuração, ainda não concluída na UFPE. No entanto, o processo do judiciário já nos leva à indignação.
Depois do indiciamento da delegacia, o caso foi para o Ministério Público Estadual. E de lá saiu uma decisão perturbadora. O promotor Leonardo Caribé descaracterizou o crime de Estupro, esclarecendo, a partir de interpretação baseada em lei desatualizada, que houve uma importunação ofensiva ao pudor, e não estupro. Melhor dizendo: o promotor entende que, se não houve ameaça violenta grave ou consumação do ato sexual, não existiu estupro. É como se a falta de um elemento concreto de ameaça (faca, canivete, arma de fogo) ou o fato de ela não ter ficado sem roupa indicasse que foi um crime de menor gravidade.
Ora, um caso de estupro não pode ser tratado de maneira tão simplista. Não existe proporção direta entre quantidade de violência física e tamanho do trauma da agredida. A interpretação não é a mesma de uma conta matemática. Simplesmente porque tanto o tapa quanto a coação psicológica têm impactos simbólicos. A vítima de um “reles” apalpar de seios e a vítima de um ato sexual forçado carregam igualmente a dor de terem sido molestadas. É impraticável medir em quantidades a diferença de um trauma para outro, como se fosse a comparação entre R$1,00 e R$100,00.
A cultura economicista nos acostuma a quantificar tudo. No entanto, relações sociais não são transações financeiras. Nem tudo é comércio. Por isso, não dá pra estabelecer uma competição entre a que foi penetrada e a que foi apalpada.
Olhando por outro ângulo: o parecer do promotor, em tirar de estupro e passar para importunação, significa que, se Zaverucha for culpado, ele deixará de ser preso e pagará a pena com cestas básicas ou multa. De um crime hediondo, chegamos a uma contravenção penal. E uma punição meramente material não compensa o dano simbólico de uma agressão. O mínimo que uma vítima nesta situação quer é que a vida e a mente do agressor sejam tão abaladas quanto as dela. E a multa com cestas básicas não faz isso.
Talvez se a decisão dependesse das alunas e funcionárias da Universidade, os rumos estivessem sendo outros. Mas elas não podem escolher: todo o poder sobre a resolução do caso está com o judiciário e com o Reitor da UFPE. E por isso a apuração do ato se torna uma discussão técnica, de leis e jurisprudência. Nós, mulheres e povo, como sempre, só podemos observar. A verdadeira Justiça foge das nossas mãos.
Queremos justiça, não a simples interpretação técnica da lei!
Nenhuma apalpada é reles
Se os rumos do caso estão fora do nosso alcance, as ferramentas de cobrança estão, sim, disponíveis. A única ação possível para quem se indigna é a publicidade. Assim, até a solução do caso, cobraremos que a justiça seja feita.
Ao contrário do que parece fazer o parecer do promotor, este texto advoga pela vítima deste caso e por todas as vítimas de assédio sexual e estupro nos locais de trabalho, dentro de casa, na rua. A nossa luta é diária e cada caso vencido é uma vitória que nos anima a lutar mais. O caso relatado pode, como muitos outros, ser esquecido e arquivado. E é por isso que fazemos este lembrete: não podemos permitir que mais uma agressão seja esquecida. Não podemos aceitar que, caso seja culpado, Zaverucha não sinta as consequências de sua conduta. E não é justo que sua condição simbólica de opressor – professor universitário, homem, branco e de classe alta -, seja desconsiderada na análise do caso. Como se apenas a força física fosse um fator de dominação. Na verdade, sua condição social torna a suspeita mais séria e a resolução do caso urgente.
PELA JUSTIÇA NO CASO ZAVERUCHA!
Publique e replique este texto.
Fonte: Centro de Mídia Independente
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