por Bernardo Esteves
o abrigo do sol renitente do inverno no cerrado, dois estudantes contemplavam os livros usados à venda numa banca ao lado de uma barraca de tapiocas. No cardápio, havia quadrinhos de Robert Crumb, um volume da série Harry Potter, uma velha edição da Origem das Espécies e uma coletânea de diálogos entre Fernando Gabeira e Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil do maio de 1968 na França.
Um pouco de política, um pouco de ciência e referências pop: a seu modo, o ecletismo da seleção representa os diferentes universos que se cruzaram na segunda semana de julho no campus Samambaia, da Universidade Federal de Goiás. A capital goiana sediou a 63ª edição da Reunião Anual da SBPC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Durante aquela semana, circularam pelo campus quase 9 mil participantes vindos de todos os estados do Brasil. Puderam escolher entre 174 conferências e mesas-redondas, visitar estandes de centros de pesquisa e editoras, e aproveitar uma programação cultural que abarcava de Tetê Espíndola a Tulipa Ruiz. Nas trilhas que ligavam os prédios da universidade, o que mais se via eram estudantes forasteiros fotografando os macacos que povoam o campus, aparentemente mais acostumados ao convívio com humanos do que o inverso.
As conferências mais importantes eram proferidas num auditório amplo, com vista vazada nas laterais para a paisagem. Falaram ali os três ministros que participaram do encontro – o da Ciência e Tecnologia, o da Educação e o da Integração Nacional. Mas as questões políticas não se restringiram à fala das autoridades e transbordaram para outros espaços.
A bióloga Helena Nader, presidente da SBPC, não perdeu uma ocasião para defender os interesses dos cientistas nas diversas aparições que fez durante a semana. Entre as bandeiras por ela levantadas, estava a reivindicação de que a Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado seja ouvida antes que a casa vote o Código Florestal aprovado pela Câmara em maio. Nader cobrou também a derrubada do projeto de lei que permite a contratação irrestrita de professores universitários sem diploma de pós-graduação, além de defender um regime menos burocrático para a contratação de cientistas em institutos de pesquisa.
Há anos questões como essas não ocupavam espaço tão central numa reunião da SBPC. Longe de ser fortuita, a politização do evento é uma reação da entidade aos cortes feitos no início do governo Dilma Rousseff ao orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia. Depois de dois mandatos de vacas gordas para o setor, acabou-se a lua de mel dos pesquisadores com o petismo. “Não poderíamos deixar de pontuar os tormentos a que está sujeita a comunidade acadêmica”, disse Nader para justificar as queixas recorrentes.
os anos 70, quando Fernando Gabeira amargava o exílio na Suécia e Daniel Cohn-Bendit militava num grupo anarquista de Frankfurt, a política era o ingrediente essencial dos encontros da SBPC. Naqueles anos de ditadura, a reunião era um dos poucos fóruns – senão o único – em que se discutiam abertamente a necessidade de democratização e os problemas sociais do Brasil.
O mais agitado desses encontros foi o de 1977, que a PUC de São Paulo acolheu após o regime militar proibir sua realização em universidades públicas. “A assembleia final foi como um comício monumental, com o anfiteatro lotado pedindo a anistia”, lembrou-se o jurista José Monserrat Filho, da Agência Espacial Brasileira. “Foi de lavar a alma”, acrescentou ele, que se tornou um frequentador assíduo das reuniões da SBPC a partir daquele ano.
Com o fim da ditadura, as discussões políticas ganharam novas arenas e esvaziaram as reuniões anuais da SBPC. É verdade que o tema nunca esteve totalmente ausente dos encontros da entidade, mas as discussões deixaram de ter a mesma reverberação dos anos de repressão. Hoje a SBPC busca meios para fazer com que seus encontros voltem a ser relevantes.
Uma tentativa nesse sentido foi a criação, no ano passado, da série de debates “Ciência em ebulição”, que opõe pontos de vista sobre questões científicas. O modelo é inspirado nos debates eleitorais da televisão, com intervenções cronometradas, réplicas e tréplicas. Ao apresentar o primeiro debate, o biólogo Aldo Malavasi, idealizador da série, disse que queria “ver sangue”. Na discussão sobre o Código Florestal, porém, a reação morna da plateia estava mais para um leve arranhão. O biólogo Sergius Gandolfi, da USP, que jogou com o público a favor, atacando o novo código, acredita que esse tipo de debate ajuda a politizar a SBPC. “É fundamental dar visibilidade a questões científicas que afetam o desenvolvimento do país, para que pessoas de diferentes idades e níveis de formação sejam estimuladas a entrar no debate”, disse ele.
Mas não basta sangue para manter relevantes as reuniões anuais da entidade. Helena Nader acredita que, para isso, será essencial conquistar as novas gerações de estudantes. “Vamos ter que nos reinventar para os jovens”, afirmou a presidente. “Mas eles hoje usam outra linguagem, teremos que inseri-la na nossa comunicação se quisermos que eles passem a acompanhar as reuniões.”
Enquanto Nader falava, acontecia no auditório principal um debate sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Alheios à discussão inflamada, um punhado de estudantes se aglomerava do lado de fora do prédio, sentado no chão com seus laptops no colo. Aproveitavam a internet sem fio do evento para ler e-mails e atualizar seus perfis nas redes sociais. Pelo visto, os jovens que a SBPC quer atrair já frequentam a reunião.
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